1 Introdução
A crise global instaurada na saúde pública, a partir da disseminação desenfreada da Covid- 19, doença altamente contagiosa e potencialmente letal, motivou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a editar recomendação elevando- a à situação de pandemia em nível mundial.
Com o alerta emitido, o Congresso Nacional sancionou a Lei n. 13.979/2020, que estabelece diversas medidas para enfrentamento dessa emergência pela saúde pública, de significativa relevância, e, posteriormente, diante do agravamento do quadro pandêmico, foi também editado o Decreto Legislativo n. 6/2020, reconhecendo o estado de calamidade pública no país.
A partir de então, obviamente, o Brasil passa pela pior crise econômica, já que além da saúde, todos os demais setores e segmentos do cotidiano foram diretamente afetados, não escapando de suas consequências nem mesmo o judiciário.
Com isso, a população busca a todo tempo encontrar meios para promover a sua subsistência física e financeira. Uns, optam por trabalhar, correndo o risco de serem testados positivos, outros preferem ser beneficiados com os auxílios concedidos pelos governos (federal, estadual e até mesmo municipal) e uma outra parcela, acredita-se que bem grande, inclusive, utiliza-se de todas as ferramentas disponíveis para socorrer-se do Judiciário para obter tutelas que possam garantir sua subsistência.
Diante do dramático quadro, não se pode desprezar, sob nenhum pretexto, o pronto uso das medidas excepcionais de execução, as quais devem continuar sendo deferidas pelos juízes, pois, além de não se saber por quanto tempo perdurará esta situação, é natural que devedores aproveitem-se disso para não fazer frente às suas obrigações.
2 As medidas atípicas de execução
O antigo Código Processual Civil/73 previa as medidas tradicionais de coerção, com objetivo de satisfazer um crédito.
Com a promulgação do Código de Ritos/2015, a despeito da matéria relacionada ao processo de execução ter sofrido pouca alteração, alguns pontos específicos foram aperfeiçoados.
Em uma grande tomada de relevo e inovação do procedimento executório, destacamos o inciso IV do artigo 139, pois, de forma imediata, reforçou as maneiras de coerção tradicionais, como também acresceu as hipóteses de atuação do julgador, quais sejam: determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto a prestação pecuniária.
Da sintética leitura da norma apontada, percebe-se que o legislador deu poderes ao magistrado, que antes inexistiam, para utilização de mecanismos que permitam alcançar o resultado pretendido (útil do processo).
Vale destacar que, para aplicação das medidas atípicas, é imprescindível o esgotamento prévio das vias comuns de satisfação do débito.
E não é só isso. Para utilização do artigo 139, inciso IV do Código de Processo Civil, o juiz deve analisar pontualmente cada caso e, especialmente, respeitar os princípios constitucionais e processuais, a exemplo da dignidade humana, da razoabilidade, da proporcionalidade, da eficiência do processo, da legalidade.
Desde a introdução do artigo em comento na atual legislação processual vigente, a questão é muito debatida por juristas e doutrinadores, pois há quem defenda ferrenhamente a utilização de medidas extremas para alcançar o resultado útil do processo e há, por outro lado, quem defenda que a aplicação das medidas atípicas desrespeita as premissas constitucionais.
Há muito a ser debatido, ainda, para que se trilhe um caminho único e sólido para aplicação das medidas não tradicionais, como meio para o cumprimento do comando judicial.
Vale pontuar que, na prática, os magistrados, temerosos em extrapolar seus poderes, quando da aplicação das medidas atípicas buscadas pelas partes – por ausência de jurisprudência pacificada – optem, de regra, por indeferir os requerimentos formulados, sob a alegação de inexistência de previsão legal ou que as providências extrapolariam o objetivo do processo.
Vejamos alguns entendimentos da Corte de Justiça rondoniense e do Superior Tribunal de Justiça:
“Agravo de Instrumento. Execução. Pretensão de suspensão ou apreensão da CNH. Medidas coercitivas que extrapolam a razoabilidade e objetivo do processo. Recurso não provido. Segundo entendimento do STJ, não é razoável e nem efetiva a adoção das medidas excepcionais e coercitivas requeridas de suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), haja vista que tais providências extrapolariam o objetivo do processo, de expropriação direcionado à satisfação do crédito exequendo.” (Agravo de Instrumento, Processo nº 0800439- 91.2020.822.0000, Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia, 2ª Câmara Cível, Relator(a) do Acórdão: Des. Hiram Souza Marques, Data de julgamento: 8/5/2020) “STJ. Recurso Especial. Ação de Compensação Por Dano Moral e Reparação Por Dano Material. Cumprimento de Sentença. Quantia Certa. Medidas Executivas Atípicas. ART. 139, IV, DO CPC/15. Cabimento. Delineamento de Diretrizes a Serem Observadas Para Sua Aplicação. 1. Ação distribuída em 10/6/2011. Recurso especial interposto em 25/5/2018. Autos conclusos à Relatora em 3/12/2018. 2. O propósito recursal é definir se, na fase de cumprimento de sentença, a suspensão da carteira nacional de habilitação e a retenção do passaporte do devedor de obrigação de pagar quantia são medidas viáveis de serem adotadas pelo juiz condutor do processo.O Código de Processo Civil de 2015, a fim de garantir maior celeridade e efetividade ao processo, positivou regra segundo a qual incumbe ao juiz determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária (art. 139, IV). 3.A interpretação sistemática do ordenamento jurídico revela, todavia, que tal previsão legal não autoriza a adoção indiscriminada de qualquer medida executiva, independentemente de balizas ou meios de controle efetivos. 5. De acordo com o entendimento do STJ, as modernas regras de processo, ainda respaldadas pela busca da efetividade jurisdicional, em nenhuma circunstância poderão se distanciar dos ditames constitucionais, apenas sendo possível a implementação de comandos não discricionários ou que restrinjam direitos individuais de forma razoável. Precedente específico. 6. A adoção de meios executivos atípicos é cabível desde que, verificando-se a existência de indícios de que o devedor possua patrimônio expropriável, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário, por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade. 7. Situação concreta em que o Tribunal a quo indeferiu o pedido do exequente de adoção de medidas executivas atípicas sob o singelo fundamento de que a responsabilidade do devedor por suas dívidas diz respeito apenas ao aspecto patrimonial, e não pessoal. 8. Como essa circunstância não se coaduna com o entendimento propugnado neste julgamento, é de rigor – à vista da impossibilidade de esta Corte revolver o conteúdo fático-probatório dos autos – o retorno dos autos para que se proceda a novo exame da questão. 9. De se consignar, por derradeiro, que o STJ tem reconhecido que tanto a medida de suspensão da Carteira Nacional de Habilitação quanto a de apreensão do passaporte do devedor recalcitrante não estão, em abstrato e de modo geral, obstadas de serem adotadas pelo juiz condutor do processo executivo, devendo, contudo, observar- se o preenchimento dos pressupostos ora assentados. Precedentes. Recurso Especial Provido.” (STJ – REsp: 1782418 RJ 2018/0313595-7, Relator: Ministra Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 23/4/2019, T3 – Terceira Turma, Data de Publicação: DJe 26/4/2019)
Verifica-se, assim, que os magistrados, condutores dos autos de execuções, optam por não utilizar as medidas excepcionais, por receio de, na maioria das vezes, não ser a via mais proporcional e adequada ou mesmo de cometer eventualmente um crime de abuso de autoridade, o que, de regra, poderia ser penalizado com suporte na Lei n. 13.869/2019.
Desse modo, defenderemos a seguir a utilização das medidas atípicas de execução no período da pandemia.
3 O cenário atual em tempos de Covid-19
A situação da pandemia é fato público e notório, sendo devidamente reconhecido o estado de calamidade pública nacional, conforme Decreto Legislativo n. 6 de 2020 e a própria legislação federal de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional, Lei n. 13.979/20.
Como consequência, obviamente, o Brasil passa por uma crise econômica, afetando lamentavelmente a saúde, a política, a economia e, também, o judiciário.
No entanto, embora o caos esteja instalado, o país precisa seguir. Claro que, com a observância das medidas e cautelas definidas pela OMS, pois até então não temos conhecimento de quanto tempo mais a pandemia persistirá, podendo, inclusive, ser uma situação permanente por longos anos, de modo que a população deverá se adequar a uma eventual nova realidade.
4 A utilização das medidas executivas atípicas no período da pandemia
A pandemia causada pela Covid-19, instaurada mundialmente, desencadeou um verdadeiro colapso no sistema de saúde brasileiro, causando, por via reflexa, efeitos emergenciais nas mais diversas áreas de âmbito nacional, estadual e municipal.
E no Judiciário não foi diferente, sendo que os principais prejudicados, sem dúvida alguma, estão sendo os credores, pois, ao menos no estado de Rondônia, os magistrados passaram a nem mesmo dar aplicabilidade às medidas tradicionais executórias, quiçá aplicar as atípicas.
Oportuno pôr em relevo que, as razões usuais utilizadas como fundamento para não aplicação das normas atípicas, são, via de regra, a afetação da saúde pública e, principalmente, da economia como um todo.
No entanto, a nosso sentir, o artigo 139, inciso IV, do Código Processual Civil, foi incluído com o nítido propósito de fazer valer as leis e decisões judiciais e não dar mais oportunidade para o devedor de não cumprir com sua obrigação, mesmo que seja no período de pandemia.
Aliás, ao que se percebe, é que muitos devedores estão se aproveitando da pandemia da Covid-19 para se esquivar do pagamento das dívidas judiciais.
É claro que, para utilização de uma medida atípica específica, deve o julgador analisar o caso em concreto, observando alguns fatores (o comportamento do executado; a medida terá natureza indutora de satisfação do crédito; o postulado é proporcional; concessão do direito ao contraditório e a ampla defesa), inclusive, no período de pandemia que assola o mundo. E somente após isto, o magistrado deverá fundamentar a decisão para afastar ou não o pleito do credor.
Percebe-se, evidentemente, que com a pandemia da Covid-19, aquilo que vinha sendo construído pela jurisprudência desde a promulgação do Código Processual Civil vigente, voltará a ser engessada até que as atividades voltem ao normal e os julgadores sejam sensíveis quanto à aplicação das medidas atípicas nos casos em concreto.
Por fim, cabe aqui fazer um acréscimo, esclarecendo que, por não se ter previsão do momento em que a pandemia acabará, na condição de operadores do direito, é necessário buscarmos constantemente mudar o entendimento dos magistrados, a fim de demonstrar a real necessidade de aplicação das medidas excepcionais de execução neste período, alcançando, por óbvio, o resultado útil do processo.
5 Considerações finais
Pelo quanto explicitado, entendemos ser demasiado importante e de destaque a atuação serena e firme dos nobres advogados operadores do direito, principais figuras nesse cenário, pois devem partir destes os requerimentos bem fundamentados, apontando os motivos para aplicação das diversas medidas como meio de compelir o devedor a satisfazer os direitos do credor, especialmente no período da pandemia da Covid-19, uma vez que inexiste previsão para que a situação em comento chegue ao seu final.
Celso Ceccatto
Graduado em direito pela Universidade Estadual de Londrina. Pós-graduado em metodologia do ensino superior pela Faculdade de Ciências Humanas, Exatas e Letras de Rondônia. Pós-graduado em Processo Civil pela Faculdade de Ciências Humanas, Exatas e Letras de Rondônia. Ex-conselheiro estadual da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Rondônia. Ex-conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Rondônia. Ex-professor da Faculdade de Ciências Humanas, Exatas e Letras de Rondônia. Procurador aposentado da Assembléia Legislativa do Estado de Rondônia.
Eduardo Augusto Feitosa Ceccatto
Graduado em direito pela Universidade Luterana do Brasil. Pós-graduado no curso de preparação para magistratura pela Escola da Magistratura do Estado de Rondônia. Pós-graduado na MBA em Direito Civil e Processo Civil pela Fundação Getúlio Vargas. Pós-graduando em advocacia trabalhista pela Universidade Anhanguera/Rede Luis Flávio Gomes. Pós-graduando em advocacia previdenciária pelo Instituto Nacional de Formação Continuada (Infoc). Ex-Membro da Comissão da Jovem Advocacia e da Comissão de Seleção e Habilitação da Ordem dos Advogados do Brasil.