Benefícios e malefícios da Medida Provisória n. 966/2020

Laércio Batista de Lima

Formado em Direito pela Faculdade de Ciências e Letras de Rondônia (Faro), Advogado há mais de 25 anos, atua na área cível, trabalhista, penal e eleitoral.Pós-graduado em Direito Civil e Processo Civil (Faro), Direito Penal e Processo Penal (Ulbra). Foi conselheiro e tesoureiro da OAB-RO nos triênios 2007/2009 e 2010/2012.

Larissa Barbosa Lima

Formada em direito pela Uni- versidade Luterana do Brasil (Ulbra). Pós-graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

1 Introdução

É fato que o Brasil e o mundo, enfrentam na atualidade uma crise na saúde pública, sem precedentes.

Os gestores públicos estão, mesmo com orientações diárias de suas equipes técnicas, com dificuldades no enfrentamento da pandemia do coronavírus (Covid-19).

Inexiste um protocolo emitido pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que possa nortear as medidas a serem utilizadas na prevenção ou atenuação da doença.

Diante do impasse, cabe a cada país adotar uma providência isolada, entretanto, o ato muitas vezes requer atitudes que afrontam dispositivos de controle do próprio Estado, e este passa a ser um outro desafio a ser superado.

2 Oportunismo político e o desvio de finalidade

Muito embora a intenção do legislador, no ato de propor uma medida, por mais singela seja, sempre visa o bem comum e geral da população, entretanto, o viés político isolado de alguns, voltado aos interesses de particulares, acaba por contaminar a ideia originária, quando de sua execução.

O noticiário nacional, tem sido abastecido com denúncias de inúmeras irregularidades – de Norte a Sul do Brasil – na aplicação indevida dos mecanismos flexibilizados neste momento para combate ao inimigo invisível – Covid-19 – os quais foram disponibilizados para dar solução mais rápida às demandas de saúde da sociedade, as quais já eram elevadas mesmo antes da pandemia.

A natureza humana em alguns momentos surpreende, e mesmo em situação onde requer 100% de envolvimento e dedicação ao próximo, nos deparamos com indivíduos sem compromisso com a coletividade, buscando apenas obter vantagem econômica a todo custo, e em detrimento de seus semelhantes.

3 A especialidade da Medida Provisória n. 966/2020

A proposta desta medida, tem como finalidade atenuar a responsabilidade civil e administrativa dos agentes públicos por condutas em relação a medidas para a pandemia da Covid-19, enfrentada pelo sistema público de saúde de forma emergencial. Senão, vejamos:

“O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 62 da Constituição, adota a seguinte Medida Provisória, com força de lei: art. 1º Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de: I – enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da Covid-19; e II – combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da Covid-19. § 1º A responsabilização pela opinião técnica não se estenderá de forma automática ao decisor que a houver adotado como fundamento de decidir e somente se configurará: I – se estiverem presentes elementos suficientes para o decisor aferir o dolo ou o erro grosseiro da opinião técnica; ou II – se houver conluio entre os agentes. § 2º O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público. art. 2º Para fins do disposto nesta Medida Provisória, considera-se erro grosseiro o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia. art. 3º Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados: I – os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; II – a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público; III – a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; IV – as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e V – o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da Covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas. Art.4º Esta Medida Provisória entra em vigor na data de sua publicação.”

Trata-se de mais uma nova norma que integra a série de medidas editadas para compor um regime jurídico especial e específico para regular as situações jurídicas no curso da pandemia.

O noticiário nacional, tem sido abastecido com denúncias de inúmeras irregularidades – de Norte a Sul do Brasil – na aplicação indevida dos mecanismos flexibilizados neste momento para combate ao inimigo invisível – Covid-19.

A Medida Provisória disciplina a matéria em três artigos na sua parte normativa, e estabelece que no enfrentamento da pandemia ou no combate aos seus efeitos econômicos e sociais daquela, os agentes públicos somente responderão pelos prejuízos que causarem se as suas ações ou omissões contiverem “dolo ou erro grosseiro”, nas esferas civil e administrativa.

Cabe ressaltar, a prática desses atos exige relação, direta ou indireta, com as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da Covid-19.

A medida provisória reproduz normas contidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com a redação dada pela Lei 13.655/18, para limitar a responsabilidade dos agentes públicos aos atos praticados com dolo ou erro grosseiro. Assim, a norma torna-se mais específica para a situação que regula.

No tocante ao “erro grosseiro” a própria Medida Provisória o conceitua como sendo “o erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.

Na hermenêutica jurídica para caracterizar o erro grosseiro não basta que a conduta tenha sido realizada com negligência, com imprudência ou com imperícia, típicos elementos da culpa em sentido estrito.

Isso significa interpretar que a partir da edição da MP em questão, a conduta que pode ensejar responsabilização pessoal do agente público no enfrentamento da Covid-19 é apenas aquela de maior gravidade, que supere a simples falta de diligência, de pequena imprudência ou de imperícia que não seja grave.

Portanto, as condutas descuidadas, equivocadas, incorretas, apressadas, desidiosas, ineficientes, se não forem dolosa, somente ensejarão responsabilidade pessoal se forem graves de modo a caracterizar o erro grosseiro, contudo até as menores condutas dos agentes públicos merecem ser punidas.

Os agentes públicos representam a Pessoa Jurídica de direito público na atuação de suas funções, portanto até os pequenos atos de ação e omissão devem ser averiguados, haja vista que estão trabalhando para a sociedade, podemos citar aqui diversos princípios que norteiam essa ideia; princípio constitucional da transparência do serviço público, in dubio pro societate e publicidade.

Além disso, o entendimento levantado na MP se opõe aos já pacificados entendimentos doutrinários acerca da responsabilidade civil. No seu § 2º, do art. 1º, determina-se que “o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público”. Significando dizer que, todo ato administrativo que tiver relação com o enfrentamento da pandemia da Covid-19, o disposto na Medida Provisória garante o afastamento do pressuposto da responsabilidade civil e administrativa do agente público de plano pelos danos que derem causa à administração ou a terceiros, que caracteriza a correlação entre a conduta – comissiva ou omissa – resultado danos.

Fica claramente demonstrada a ofensa aos §§ 4º e 6º, do art. 37, da Constituição Federal, que estabelecem o seguinte:

“Art. 37 (…) § 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. § 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

Ademais a MP ainda viola o art. 5º, inciso V, da Constituição de 1988 em relação aos danos que eventualmente causar aos particulares, o qual determina, vejamos:

“Art. 5º (…) V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;”

É flagrante a afronta da Medida Provisória n. 966/2020 à Constituição Federal de 1988, uma vez que afasta a responsabilidade civil e administrativa objetiva dos agentes públicos no ato do exercício de suas funções que estejam relacionados com enfrentamento da pandemia da Covid-19.

Portanto, cabe mencionar que a situação excepcional exige tomada de decisões rápidas e a adoção de algumas soluções que muitas vezes não estão expressamente disciplinadas na lei, contudo o regime instituído pela MP é muito mais brando do que as regras que vigoram normalmente.

Ao atenuar a responsabilização dos agentes públicos a MP 966 impacta também a moralidade e probidade administrativa, além dos mecanismos de controle estatal da utilização dos recursos públicos, o qual deveria ser intensificado e não atenuado no atual estado de Calamidade Pública por conta da Covid-19.

O afrouxamento da responsabilização dos agentes públicos abre possibilidade para justificar atos indevidos já praticados, bem como aqueles que ainda serão praticados. São exemplos; as compras de kits de testes e respiradores, devidamente necessários, porém agora comprados com dispensa de processo licitatório, contundo deverá ser comprado com preços justos, preços praticados no mercado.

A redução de responsabilização e, consequentemente, fiscalização dos atos praticados por agentes públicos na atuação da pandemia da Covid-19, traduz-se para a nossa realidade como redução do controle estatal na utilização de recursos, o qual deveria ser intensificado e não reduzido, portanto a MP fere o princípio da eficiência administrativa e da indisponibilidade do interesse público, que vinculam o gestor a proposta mais vantajosa à Administração Pública.

Considerando que a MP fere princípios constitucionais e da probidade administrativa, o Supremo Tribunal Federal decidiu impor limites à medida provisória que relativiza a responsabilidade do gestor público durante a pandemia de coronavírus em sede da ADIS 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 E 6431 MC – REL. MIN. LUÍS ROBERTO BARROSO.

Para o STF, faz-se necessário considerar como erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação do direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado em razão da inobservância de normas e critérios científicos e técnicos.

O ministro Luís Barroso votou pela legalidade da MP na ADIS 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 E 6431, mas apontou que atos sem respaldo científico assinados durante a pandemia poderão ser enquadrados como erro grosseiro e não poderão ser anistiados, além disso fixou critérios para a responsabilização dos agentes públicos. O relator votou no sentido de dar interpretação conforme à Constituição para estabelecer que:

1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades médicas e sanitárias, internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.

Segundo o entendimento de Barroso, no entanto, a medida não eleva a segurança dos agentes públicos e também passou a impressão de que se estava querendo proteger atos considerado como erro.

O ministro afirmou que a jurisprudência do STF, em matéria de saúde, vida e meio ambiente, se move por dois parâmetros: (i) a observação de standards, pareceres técnicos e evidências científicas sobre os temas e (ii) princípios da prevenção e precaução.

Cabe destacar que no aspecto orçamentário, a decisão não traz nenhuma orientação, dando a entender que os receios de eventual crime de responsabilidade por infração à lei orçamentária parecem ter sido dissipados de vez.

Quanto os demais atos de improbidade em outras áreas que não a saúde e meio ambiente, a decisão nada dispôs e resta por constitucional a limitação desbordante de responsabilidade do artigo 3º da MP.

De todo modo, visualiza-se que a finalidade da medida provisória foi proteger o agente honesto, aquele que, tateando no escuro, tem que tomar decisões urgentes relacionadas à pandemia, sem juízo possível de certeza e que, por isso, não deveria ter que responder a processos e ser punido, salvo por erro grave e inescusável.

Diante de um sistema de controle mais atuante do Estado e que pode ter gerado essa preocupação, o risco da ousadia, salvo raras exceções, não há na Administração Pública políticas de estímulo à inovação e à eficiência, ao que se soma o eventual despreparo dos agentes públicos envolvido com questões de alta complexidade e a notória assimetria de informações entre o público e o privado, o que tende a trazer maior insegurança para a tomada de decisões, que por isso mesmo se inclinam para o lado mais burocrático, mais formalista e menos eficiente.

Decidir sobre o cotidiano da Administração passou a atrair riscos jurídicos de toda a ordem, que podem chegar ao ponto da criminalização da conduta. Sob a ótica de todo esse controle, o administrador desistiu de decidir. Vislumbrou riscos ampliados e, por autoproteção, demarcou suas ações à sua zona de conforto.

4 Considerações finais

Por fim, acreditamos que os órgãos de controle do Estado, deverão permanecer atuantes como sempre, rigorosos no cumprimento de suas obrigações legais, e os gestores dos recursos, mesmo diante de provável receio e medo do controle que se fará posteriormente, possam afastar o medo de adotar providências de imediato que cada caso requer, pois, se assim não for, a demora pode custar vidas.

Se em contextos normais os atos administrativos do gestor público já oferecem altos riscos para a coletividade, quando fogem de seus princípios basilares, o receio de decidir quando se está diante de uma pandemia é ainda mais alarmante, portanto, deve-se fiscalizar de forma mais eficiente todos os atos.

E, diante da tragédia iminente sem precedentes nos últimos tempos, a inércia tem um alto preço e a escolha é simples: eficiência, ação ou morte.