1 Por que vivemos em grupo
No caminhar de nossa espécie, após transpor a revolução cognitiva, surge como necessidade de sobrevivência a organização nuclear dos caçados-coletores: seja para caçar ou para se protegerem. Com o advento da revolução agrícola, o imperativo de organização se amplia e adquiri um contorno social1. Assim, “se nós nos transportarmos em pensamento para o seio das antigas gerações de homens, encontraremos em cada casa um altar, e ao redor desse altar a família reunida. Ela se reúne cada manhã, para dirigir ao fogo sagrado suas preces; e cada noite, para invocá-lo uma vez mais. Durante o dia, a família reúne-se ainda ao seu redor para as refeições, que dividem piedosamente depois da prece e da libação”2. Nestes encontros sacros, havia a transmissão do conhecimento e das tradições de forma oral, preferencialmente cantada, sendo a forma lúdica de gravar inconscientemente os experimentos empíricos pelos membros que ganhavam forma políticas de cada ajuntamento familiar. Evoluindo e originando os núcleos organizados pelos helênicos, conhecido como polis, embrião das cidades-estados da antiga Grécia com acondicionamento social, econômico e político, criando uma unidade que comungam de interesses comuns.
2 Organizações romanas
O município, como unidade política-administrativa, é fruto da política expansionista e de ocupação do império romano e tática militar de amainar e evitar conflitos: Divide et impera ou Divide et Vinces, que traduz em dividir para conquistar3. Os vencidos podiam manter seus deuses e seus cultos, inclusive os romanos os incorporavam ao seu panteão, não havia intolerância religiosa. Aos romanos o que importava era a atividade econômica para fomento de sua esplendorosa máquina de guerra. Os conquistados estavam sujeitos às imposições do Senado e às leis romanas. A República garantia a disciplina oriunda do arcabouço do direito privado (jus connubii, jus commercii etc.) e a auto-organização e autonomia para eleger seus governantes para dirigir a própria comunidade (jus suffragarii)4, ninguém além de seus pares era sabedor do melhor para a comunidade. Os aglomerados que atingissem a confiança de Roma eram doravante considerados Municípios (municipium) observando as balizas do Direito vigente (jus italicum)5.
3 O município no mundo novo
Por outra banda, não obstante, a porção das terras ao oeste do continente europeu, situada nos trópicos, não foram conquistadas, mas descobertas, mesmo assim as unidades políticas-administrativas foram politicamente impulsionada pelo artifício e interesse português de dividir para melhor dominar, aliando aos nativos, degredados e náufragos já ambientados nestas paragens.
O município, como unidade política-administrativa, é fruto da política expansionista e da ocupação do império romano e tática militar de amainar e evitar conflitos: Divide et impera ou Divide et Vinces, que traduz em dividir para conquistar.
A primeira instituição de estado erigida no novo mundo, pelo emissário da Coroa Portuguesa, Martim Afonso de Sousa, em 1532, foi criar o primeiro governo local autônomo das Américas, a Vila de São Vicente, no litoral paulista. Sendo realizada no mesmo ano (22/8/1532) a primeira eleição popular para eleger os líderes locais6. Sendo pactuado o primeiro acordo político entre a Coroa e o degredado João Ramalho, então principal elo com os nativos (tupiniquins), o primeiro acordo de governabilidade na Costa do (pau) Brasil7. E, sob a vigência das Ordenações Manuelinas (1521) que disciplinava as comunas portuguesas, seguiu a criação dos governos “autônomos” locais de Olinda, Santos, Salvador, Santo André de Borda do Campo e Rio de Janeiro.
4 Município como gênese da formação da nação brasileira
Revela que os entes municipais sempre tiveram importância ímpar na formação do estado brasileiro. No período de 1937 a 1945 os entes municipais, seja pela crise de 1929 e a ruptura da institucionalidade pelo estado novo, patrocinou a diminuição do poder local. De 1945 a 1964 foi restaurado o sistema federativo descentralizado. Sendo o poder local a força motriz da Constituição de 1946. Carta que reinaugurou os valores democrático e novamente devolveu a tríade da autonomia municipal: política, financeira e administrativa.
Mas em 1964, nova ruptura, e como o governo local é sinônimo de democracia, já que ninguém vive na União ou nos Estados, sendo estes entes apenas ficções políticas. O cidadão, senhor de deveres e direito, mora, convive, mercantiliza na cidade. Os então senhores do poder absoluto, eles novamente, os insubordinados militares, distribuíram o poder das polis nas mãos de militares, tecnocratas e comerciante/ industrial (classe média), sob a mira de fuzis, com o discurso da moralização, do desenvolvimentismo, do combate à inflação e da segurança nacional. E o ente municipal passou a ser apenas decorativo.
Nestas terras, os tiranos de plantão sempre temeram a autonomia dos governos locais, sendo a primeira instituição solapada sob suas botas, sob o patrocínio da “vivandeiras alvoroçadas” 8 que provocam a desatino dos militares, como reclamou altivamente o General Castelo Branco, em agosto de 1964.9
Nessa toada, a Carta de 1967 e a EC n. 1/69 reduziu em termos políticos, administrativos e financeiros o poder local. Financeiramente foram submetidos à União, que passou a concentrar a maior parte da receita pública e a impor-lhes condição de mendicância e de dependência na aplicação das verbas; e tornaram- se os entes locais mais vulneráveis perante o Estado-membro do ponto de vista político, pelo aumento das hipóteses de intervenção estadual; administrativamente, estiveram condicionados à simetria na organização, segundo matrizes da União, sem espaço para o necessário afinamento às peculiaridades de cada qual.
5 Primus inter pares 10
Tradicionalmente, o conceito de autonomia do município, e das então cidades, são fixados sobre os pilares do provimento privativo dos cargos governamentais e da competência exclusiva da comunidade em dirigir com independência assuntos que circunscreve ao interesse local. Com a advento da Carta Cidadã de 1988, construiu a autonomia municipal no disposto nos artigos 1º,18, 29, 30, 35, 39, 145, 149, 150, 158, e 182, entre outros. A substância do poder aí delineado expressa-se em quatro planos: o da auto-organização, o do autogoverno, o da autolegislação e o da autoadministração, sendo o primeiro a principal novidade incluída no objeto do “direito público subjetivo” do Município, oponível aos demais entes federativos11.
O sistema federativo pátrio coloca seus entes no mesmo plano de importância, todos são Estados-membros, estão subordinados a Constituição Federal e possuem como características a descentralização político-administrativa com a prerrogativa autonomia política e autonomia administrativa; participação das vontades parciais na vontade geral, que é a participação dos Estados-membros na vontade nacional, se manifestando por meio do Senado Federal, responsável pela manutenção do equilíbrio federativo12; e, a auto-organização dos Estados-membros. É a capacidade de auto-organização por meio de Constituições próprias erigindo poderes próprios para o exercício de suas funções legislativa, executiva e jurisdicional.
6 Na crise sanitária qual norma prevalece
Assim como as pessoas moram nos municípios, por óbvio, os assuntos de interesse local são tratados na comunidade. Garantido pelo constituinte de 1988. Ocorre que o mundo foi conflagrado em uma hecatombe sanitária, e o Brasil, com sua proporção continental e suas autonomias federativas, se viu diante do impasse com os fenômenos jurídicos do cotidiano, v.g., como: abro minha loja, posso ir ao mercado, posso viajar etc. Isso afeta os cidadãos no dia a dia, não há vacatio legis, os fatos e suas resoluções são prementes, muito embora de forma deliberada, promovido pela esquizofrenia do Poder Executivo da União, que deveria ser o condutor gerencial da crise sanitária, mas tem atuado de forma desbragadamente irresponsável, como é mundialmente reconhecido.
Como o Poder Executivo Federal acéfalo ficamos diante de cinco mil e quinhentos e noventa e oito (5.570 municípios, 26 estados, um distrito federal e a união) arcabouços jurídicos vigentes de normas que implicam no cotidiano dos cidadãos. Cada ente com a sua especificidade e a crise sanitária exigindo seu enfrentamento de forma escalonada e com respostada diferente em cada fase. Assim como as pessoas moram nos municípios, por óbvio, os assuntos de interesse local são tratados na comunidade.
A crise pandêmica está sendo a transposição do sistema federativo pátrio para a maioridade, e o ponto determinante foi a edição da Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, sendo o ponto de ignição legal do enfrentamento da enfermidade, que estabeleceu as orientações gerais, destacando a competência de cada autoridade, a fim de que o território brasileiro adotasse com uniformidade as medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da crise que se avizinhava. Mas, como dizia o poeta das minas gerais, Carlos Drummond de Andrade, “no meio do caminho tinha uma pedra” (bruta), o chefe do Poder Executivo da União, que passou a militar e sabotar contra as assertivas científicas e as experiências colhidas pelo velho continente. E com atos e atitudes, promovidos diuturnamente, belicosos e desarrazoados contra os chefes dos poderes executivos dos demais entes que fiavam aos seus governados os resultados sabidos das evidências científicas e os achados da experimentos positivo em biossegurança dos países europeus. Estávamos diante de uma celeuma que trazia ambiguidade de saber qual norma expedida devia o brasileiro em pânico cumprir. Levando a questão o julgamento da ADF n. 672/DF, que teve como relator o Ministro Alexandre de Moraes em seu voto condutor da ADPF n. 672/DF, que na ocasião: O direito à vida e à saúde aparecem como consequência imediata da consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. Nesse sentido, a Constituição Federal consagrou, nos artigos 196 e 197, a saúde como direito de todos e dever do Estado, garantindo sua universalidade e igualdade no acesso às ações e serviços de saúde.
Sabemos que como nos primórdios de nossa espécie, conviver em grupo tem o propósito de preservação, seja coletivo ou individual, hoje traduzido como a busca da dignidade da pessoa, sendo a vida e a saúde o caminho de atingir este fim. Nos organizamos para buscar este resultado, inclusive, como uma federação. E nossa cidade é a célula mater da federação, onde genuinamente e substantivamente estão os brasileiros, é aqui que as pessoas vivem.
Assim, a decisão balizou que no âmbito da competência concorrente ou cumulativa prevalecerá a norma de maior abrangência. Entre o conflito de interesses advindo dos fenômenos jurídicos e a necessidade de interação das normas legais: prevalece o que almejar a proteção do bem maior. E como todas as vidas importam! Tanto que o constituinte de 1988 estabeleceu, dentre outros, a saúde como direito social e garantia fundamental (art. 6º). E tem o Estado a obrigação de prever e prover os meios de alcançar, manter e ou recuperar a saúde (art. 196), que é sinônimo do bem estar, que o objeto buscado pelos governantes e razão da existência das instituições. …nossa cidade é a celula mater da Federação, onde genuinamente e substantivamente estão os brasileiros, é aqui que as pessoas vivem.
Há enorme preocupação com a economia do país e a preservação de empregos e geração de imposto para manutenção da máquina pública. É sabido que a ferramenta de amaina o contágio e a proliferação do vírus são as medidas de restrições, que impõe cerramento das portas do comércio, visando a proteção maior que é a vida. Revelando comezinhos, nestes dias estranhos em que vivemos o conflito entre estes dois valores jurídicos: a vida e o interesse econômico. Portanto, entre prevalência do interesse econômico e o do interesse à saúde em geral, nosso ordenamento prevê que deve prevalecer a vida. A vida é o bem maior do ser humano e o caminho para se buscar a dignidade e a sobrevivência da espécie.
Assim, as legislações municipais passaram a sobrepor a normas federais e estaduais, se as últimas se ocuparem de bem inferior. Revelando a importância do direito municipal neste momento agudo que nossa geração passa.
A pandemia vivenciada em Oram, descrita no livro A peste (1947) do franco-argelino Albert Camus, revelou fenômenos sociais novos, como vivemos hoje, lá levou dez meses para transpassar o flagelo sanitário. Vamos torcer que este ciclo, aqui, se conclua em tempo menor. Mas, não podemos ignorar que nossa espécie desborda um novo mundo com fenômenos jurídicos novos que o Direito terá que apascentar.
7 Preservar a vida é o que importa
E ter dirigentes municipais cônscios de suas responsabilidades e fiéis ao seu juramento, quando empossados, para buscar o bem estar social dos cidadãos, fará enorme diferença. Como diz Gilberto Gil13, “o povo sabe o que quer, mas também, quer o que não sabe”.
Nossos líderes dispõem de ferramentas jurídicas para buscar e garantia do bem maior: a vida. O ente mirim revelou ser o gigante da federação com garras para garantir tal intento.
Caso contrário (não buscar preservar as vidas!), esses dirigentes poderão utilizar da inscrição na base da escultura narrada no soneto (Ozymandias14) de Shelley (1818)15: “Meu nome é Ozimândias, e sou Rei dos Reis: Desesperai, ó grandes, vendo as minhas obras!”. E em vez dos escombros e do deserto que emoldura o poema, teremos choros incontidos, ritos de despedidas não realizados, familiar abruptamente reduzida, lápides (estamos sendo sepultados em covas comuns) e os frangalhos da economia, fruto da irresponsabilidade e da renúncia da autonomia municipal que esses dirigentes dispunham e não utilizaram para garantir nossa sobrevivência ao vírus.
Isso não é uma escolha, é uma necessidade.
Márcio Antonio Pereira
Advogado. Presidente da OAB Subseção Rolim de Moura, no triênio 2019/2021. Secretário- geral da OAB Subseção de Rolim de Moura, no triênio 2016/2018. Conselheiro estadual da OAB Seccional Rondônia, no triênio 2010/2012.