Acreditamos em uma ordem em particular não porque seja objetivamente verdadeira, mas porque acreditar nela nos permite cooperar de maneira eficaz e construir uma sociedade melhor. Ordens imaginadas não são conspirações malignas ou miragens inúteis. Ao contrário, são a única forma pela qual grandes números de seres humanos podem cooperar efetivamente.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade.
1 Prólogo
Refletir sobre processo penal, a fim de tentar compreendê-lo, não pode, ao nosso sentir, deixar de tratar de suas origens, assim como se apresentava no antigo teatro grego – a primeira parte da tragédia. A nossa primeira parte da tragédia, por escolha argumentativa neste espaço curto de reflexão dogmática, é nosso atual livro básico de processo penal gestado em um período que todos conhecem, entre os anos 30, início dos anos 40, quando o mundo enfrentava a pior das catástrofes humanitárias que se tem notícia em tempos modernos: a segunda grande guerra.
Nosso atual Código de Processo Penal, que veio ao mundo através do Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, sofreu profunda influência ideológica do Código de Processo Penal Italiano, o conhecido Codice Rocco. A construção científica dos institutos processuais penais presentes no código ainda em vigor, malgrado as várias alterações que sofreu ao longo dos anos, partem da premissa de um processo penal de bases inquisitórias e autoritárias (comuns ao momento histórico de sua concepção), ancorados na ideia fascista que povoava a Itália naquele momento histórico.O fato é que, salvo raríssimas exceções, as ideias originais de nossa lei processual ainda povoam o imaginário coletivo dos atores principais que trabalham com processo penal: juízes, promotores de justiça, delegados de polícia e até mesmo de advogados malformados. Neste ponto, é o que escreve a colega Michelle Gironda Cabrera1 em um artigo publicado no site Canal Ciências Criminais, cujo título é: A mentalidade inquisitória do processo penal brasileiro:
O processo penal brasileiro está não só impregnado por uma mentalidade inquisitória (presente tanto no imaginário coletivo como no dos próprios atores do sistema de justiça criminal), como é, em certa medida, menos racional que o operado à época dos Santos Ofícios.
O que houve, e continua a ocorrer, é uma aguda expansão dos mecanismos de controle e vigilância social e, ao contrário do propugnado pela tradição iluminista – e sua proteção às garantias individuais, separação entre direito penal e moral e restrição dos arbítrios judiciais –, o que se vive são tempos de messianismo em que “os fins justificam os meios.
A percepção da colega articulista revela, desnuda, apresenta o que realmente habita o imaginário de boa parte dos atores envolvidos no processo penal brasileiro: o que convenciono chamar de autoritarismo estrutural, hoje representado com muita evidência na ideia da eficiência que se busca nas soluções das lides penais, onde o caminho (o processo) é mero instrumento para a consecução de um fim (a sentença). É sabido que no direito os meios sempre qualificam os fins, ou não.
Nessa caminhada utilitarista, por vezes as liturgias processuais, notadamente aquelas que asseguram o exercício da ampla defesa, do contraditório e, principalmente, do devido processo legal, são renegadas a segundo plano, são tratadas como entrave, como tumultuárias e obstáculos ao ímpeto estatal de pôr fim a processos a qualquer custo e de se “fazer justiça”.
Foi fincado nessas bases (autoritárias e inquisitórias) que construímos um processo penal que ainda considera como normal, muito por conta do “decido conforme minha consciência”, depoimentos de policiais como meios únicos de prova testemunhal a justificar condenações criminais2, que se nega aplicar o artigo 212 do CPP3, que impõe nefasta inversão de ônus da prova4, que aceita juiz fazer perguntas em substituição ao promotor de justiça ausente na audiência5, que condena por indícios6, que se utiliza da prisão cautelar como primeira opção de forma sistemática7, que investe na cultura da punição penal como a salvação da sociedade de todos seus males, que ainda admite a existência do juiz que julga conforme sua consciência, o solipsista; que fez sumirem as nulidades absolutas, impondo uma tal necessidade de prova de prejuízo praticamente impossível sob o ponto de vista prático8, etc. Esses são apenas alguns exemplos, o rol é extensivo. …salvo raríssimas exceções, as ideias originais de nossa lei processual ainda povoam o imaginário coletivo dos atores principais que trabalham com processo penal: juízes, promotores de justiça, delegados de polícia e até mesmo de advogados malformados.
A busca incessante por protagonismo (alimentado pelas vaidades humanas) no processo penal tem sido, ao nosso ver, um de seus piores males, e isso vem de tempo. A figura da autoridade “justiceira” tem frequentado nossos noticiários com particular destaque, com um discurso raso e eloquente onde se vende a ideia de que o papel do direito penal e do processo penal é entregar à sociedade um lugar sem violência, sem crimes. Ledo engano, nem o direito penal, tampouco o processo penal, foram concebidos para este fim, mas há a captura psíquica da atenção das pessoas, que acabam crendo na falácia.
O fato é que, na busca incansável de se fazer justiça, muitas vezes a qualquer custo, encontrará o justiceiro algo limitador de sua ânsia punitivista populista: os defensores da ordem jurídica, das garantias individuais, daqueles que defendem que em processo, forma é garantia. Em suma, encontrarão no próprio Direito a barreira para conter seus impulsos e arroubos autoritários, logo, faz sentido – aos olhos do tirano – pensar na ordem jurídica como inimiga.
Nossa doença preexiste em um processo penal com bases inquisitoriais claras e a resistência que encontramos no dia a dia em mentes impregnadas por uma espécie de autoritarismo estrutural nosso de cada dia.
2 Um processo penal para quê/quem?
É correto afirmar que nas várias alterações nas regras processuais após 1941, notadamente aquelas que vieram à tona após a entrada em vigor da Constituição Cidadã em 1988 (destacamos a Lei n. 11.689, de 2008 e a recente Lei n. 13.964, de 2019), são no sentido de alterar a percepção da identidade processual penal hodierna, que busca equilibrar a desequilibrada relação Estado/indivíduo no âmbito da persecução penal, e que funciona, agora, como instrumento de proteção das garantias insculpidas no texto da Carta e busca a identidade acusatória do processo penal, abandonando, ao menos no plano da legislação, o processo inquisitivo.
Ocorre que de nada adianta a evolução legislativa se não houver mudança de comportamento dos atores processuais, muitos ainda com mentalidade inquisitória forjada em suas mentes. O subtítulo acima vem da reflexão proposta pelo professor Aury Lopes Júnior9 em seu elementar Fundamentos do Processo Penal – Introdução Crítica, quando já no primeiro capítulo de seu livro, que considero obrigatório ao estudo do processo penal moderno, traz a provocação. Vejamos:
A primeira questão a ser enfrentada por quem se dispõe a pensar o processo penal contemporâneo é exatamente (re) discutir qual é o fundamento da sua existência, por que existe e por que precisamos dele. A pergunta poderia ser sintetizada no seguinte questionamento: um Processo penal, para quê (quem)? Buscar a resposta a essa pergunta nos conduz à definição da lógica do sistema, que vai orientar a interpretação e a aplicação das normas processuais penais. Noutra dimensão, significa definir qual é o nosso paradigma de leitura do processo penal, buscar o ponto fundante do discurso. Nossa opção é pela leitura constitucional e, dessa perspectiva, visualizamos o processo penal como instrumento de efetivação das garantias constitucionais. Na lição do professor Lopes Junior, a leitura que se faz do processo penal moderno não pode ser outra, senão aquela que advém da Magna Carta, com o processo penal que funcione como muro de contenção às investidas autoritárias do poder do Estado (possuidor de pretensão de legitimidade no exercício da violência) em face do indivíduo, bem como as conquistas históricas das garantias constitucionais.
Na mesma toada vale o destaque do julgado do STF10, no julgamento do HC 73.338/ RJ, de relatoria do decano da corte Ministro Celso de Mello, quando destaca e deixa gravado na história dos julgados garantistas da Suprema Corte, que o processo penal, longe se der instrumento do arbítrio do Estado, se reveste de verdadeira salvaguarda das liberdades individuais, de limitação ao exercício da força estatal.
A submissão de uma pessoa à jurisdição penal do Estado coloca em evidência a relação de polaridade conflitante que se estabelece entre a pretensão punitiva do Poder Público e o resguardo à intangibilidade do jus libertatis titularizado pelo réu. A persecução penal rege-se, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada, por padrões normativos, que, consagrados pela Constituição e pelas leis, traduzem limitações significativas ao poder do Estado. Por isso mesmo, processo penal só pode ser concebido – e assim deve ser visto – como instrumento de salvaguarda da liberdade do réu.
O processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de contenção e de delimitação dos poderes de que dispõem os órgãos incumbidos da persecução penal. Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu – que jamais se presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença condenatória –, o processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão judicial e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe ao acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta ao acusado, que jamais necessita demonstrar sua inocência, o direito de defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide do contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo Ministério Público.
A conclusão lógica é que o processo penal, diferente da ideia instrumental capenga (simples meio para consecução de um fim, a pena) que se vende por aí, é meio sim, de contenção da violência estatal, é meio para efetivação de garantias insculpidas na carta, é muro de contenção das investidas estatais sobre o indivíduo e ainda, meio para equilibrar a desequilibrada relação Estado indivíduo, o que ocorre com a obediência canônica da liturgia processual, bem como da forma como devem ser praticados os atos processuais. Não há processo legítimo sem a obediência estrita do devido processo legal11, isso nos parece de uma obviedade solar.
3 Tempos de crise. Vocações reveladas
Vivemos tempos inéditos para nossa geração, enfrentamos o maior desafio humanitário dos últimos 100 (cem) anos certamente, e nesse tempo, muitas vocações se revelam, se revelarão. Historicamente, a humanidadepassou por provações, que só foram possíveis serem vencidas pela cooperação entre nós como espécie. A crise sanitária global nos deu um tapa na cara como humanidade, trouxe à tona nossos piores defeitos, colocou uma lupa nas entranhas do ser humano com precisão microscópica. Nos revelamos egoístas, autoritários, gente sem empatia, sem solidariedade. O fato é que as pessoas estão, aos nossos olhos, em tempo real, escrevendo suas biografias e com toda certeza, o que cada um falou, o que cada um fez, o que cada um escreveu, o que cada um defendeu, passará no futuro – onde ainda haverá humanidade –, pelo escrutínio coletivo, pelo julgamento por tudo aquilo que fizerem, falaram, escreveram e defenderam. As digitais estão postas, o livro da infâmia está sendo escrito em tempo real. Nossa doença preexiste em um processo penal com bases inquisitoriais claras e a resistência que encontramos no dia a dia em mentes impregnadas por uma espécie de autoritarismo estrutural nosso de cada dia.
E pelas particularidades que vivemos nesses dias estranhos, numa espécie de desaceleração do tempo, fica mais perceptível o absurdo de alguns atos, de algumas manifestações, que outrora, por vezes passavam batido, diante da correria cotidiana, dessa loucura que convencionamos chamar de vida moderna. De fato, as pessoas vão deixando suas marcas, as cicatrizes históricas certamente permanecerão e, exatamente nestes momentos de crise, é que as pessoas vão revelando suas verdadeiras essências, suas verdadeiras vocações. E no que diz respeito à atividade jurisdicional, a às ações dos organismos de poder ligados a esta prestação jurisdicional, também estão deixando suas marcas, suas digitais.
Não negamos as verdadeiras boas intensões dos que comandam, por exemplo, o Poder Judiciário, mas é importante destacar que, o que percebemos, e vamos enumerar adiante alguns casos à título exemplificativo, é a aceitação da mitigação de direitos e garantias, fundado na crise, da situação excepcional que vivemos, com o objetivo de dar eficácia à prestação jurisdicional penal em razoável tempo. Não parece curioso que um dos primeiros institutos a serem suspensos após a declaração de pandemia e Estado de calamidade, tenham sido as audiências de custódia? Realização de exames de corpo de delito através de fotos, em cores ou preto em branco, foi o que vi em um comunicado oficial da Direção da Polícia Civil local. Não parece curioso? Na primeira oportunidade, a mitigação de direitos do indivíduo sob custódia do Estado é a escolha. Todas essas ações vão desequilibrando a relação já desequilibrada entre Estado/indivíduo. Mas isso é só o começo. Interessante observar que o CNJ, através da Recomendação 62, de 17 de março de 202012 “Recomenda aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid- 19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo”. Dentre as recomendações destacamos as medidas constantes nos artigos 4º e 5º.
Em linhas gerais, a recomendação do CNJ traz em sua essência, notadamente nos artigos em destaque, orientação clara aos tribunais pátrios que evitem o aprisionamento cautelar e ainda que fossem revistas decretações de prisões cautelares, no intuito de evitar o cárcere provisório em razão da possibilidade de contaminação endêmica no âmbito do sistema carcerário nacional (o que já ocorre), antecipar progressões de regime prisional, dentre as outras medidas acima em destaque.
Noutra banda, recomenda, como alternativa, a realização de audiências de instrução criminal através de videoconferência, no caso de réus que ainda permaneçam presos cautelarmente e a redesignação de atos no que toca aos réus soltos. Também recomenda a suspensão da realização das audiências de custódia. Enfim, observando a dinâmica do que ocorre no dia a dia, de quem lida com demandas criminais, nota-se que a opção adotada por grande parte dos juízos não foi rever prisões cautelares, na forma como recomendado, não foi antecipar progressões de regime. O que se fez, de plano, foi suspender audiências de custódia e adotar para os feitos onde existem pessoas presas cautelarmente, a realização de audiências de instrução criminal por videoconferência, que é, obviamente, uma opção que mitiga direitos fundamentais e garantias constitucionalmente asseguradas a todos que sofrem incursão da máquina repressiva estatal.
Muito já se falou e tanto já se escreveu sobre o problema das audiências de instrução criminal por videoconferência quando os réus estão presos, e como isso limita o amplo exercício do direito de defesa, como isso desumaniza ainda mais o processo, sem nenhuma dúvida, é uma opção que limita o pleno exercício da defesa, bem como afasta, precipuamente, aquela função do processo penal de ser instrumento de salvaguarda da liberdade do réu. O burocratas e tecnocratas do direito não verão nenhum problema. Não se discute a excepcionalidade, em razão de tudo que vivemos como humanidade, mas será que, em nome da eficiência e da relutância de muitas autoridades em rever prisões cautelares, é justificada a mitigação de direitos consagrados na Lei Maior? Trata-se de uma escolha civilizatória. Podemos escolher a mitigação de direitos, é fato, mas é preciso termos a plena consciência de que, assim agindo estaremos abrindo um espaço à concepção do processo penal apenas como meio para consecução de um fim, o que parece afrontar as bases daquele processo penal de garantias, como ensina Lopes Junior13, em obra citada.
Diante desse cenário de risco total em que o processo penal se insere, mais do que nunca devemos lutar por um sistema de garantias mínimas. Não é querer resgatar a ilusão de segurança, mas sim assumir os riscos e definir uma pauta de garantias formais das quais não podemos abrir mão. É partir da premissa de que a garantia está na forma do instrumento jurídico e que, no processo penal, adquire contornos de limitação ao poder punitivo estatal e emancipador do débil submetido ao processo.
Recentemente, inclusive, se ventilou a ideia (ainda em discussão e com possibilidade de efetivação prática) da realização de sessões plenárias do Tribunal do Júri com a utilização da videoconferência, proposta feita pelo CNJ14, o que sepulta, com o devido respeito a que entende em contrário, a verdadeira essência do julgamento popular, com todas suas particularidades litúrgicas, sua natureza orgânica, visceral, a oralidade necessária, enfim, explicar o óbvio não é tarefa fácil. O fato é que o CNJ busca reescrever o procedimento dos julgamentos de crimes dolosos contra a vida, o que viola suas atribuições administrativas e macula de vício de inconstitucionalidade de nascença, em primeiro lugar porque o CNJ não detém a competência para legislar sobre processo penal, essa competência é da União (artigo 22, I, CR/88); em segundo lugar, porque não se trata de matéria prevista no artigo 103-B da Constituição da República15. E tudo isso em nome da tal eficiência na prestação jurisdicional e o direito a duração razoável do processo no que toca a réus presos. Se o problema é o réu preso, porque não substituir a prisão cautelar por medida cautelar diversa16, ou reavaliar as prisões cautelares na forma como indicado pelo CNJ em recomendação acima citada.
As audiências de instrução criminal por videoconferência, bem como a proposta de julgamento pelo Tribunal do Júri por essa ferramenta também, têm encontrado resistência por parte de instituições que defendem o processo penal de índole constitucional, tais como Conselho Federal da OAB, Abracrim, IBCcrim, dentre outras. A luta é árdua. Destacamos o belo artigo publicado pelo colega Defensor Público do Estado de Rondônia, Diego de Azevedo Simão, no site Conjur17, onde analisa com maestria a inconstitucional proposta de julgamento pelo Tribunal do Júri com a utilização da ferramenta da videoconferência, e destacamos a citação feita pelo articulista do que diz o magistrado e professor André Nicolitt18:
(…) o direito de se defender perante o juiz não pode ser exercido plenamente se entre homens existe uma máquina. O juiz, que não raro se esquece de sua condição humana e da condição humana daquele que está sob seu jugo, que não raro deixa de ver o homem que está atrás do número dos autos, com maior facilidade ainda, se perderá na insensibilidade quando entre ele e o homem em julgamento estiver uma máquina que apenas aproxima duas dimensões muito distantes.
Talvez o lado bom da coisa é que, com a realização dessas audiências de instrução criminal por videoconferência, as vísceras da aplicação na prática daquele processo penal de influência fascista vêm sendo expostas. Vimos julgadores, por exemplo, com particular entendimento sobre o direito ao silêncio, achando que o acusado se defende do juiz, não da peça acusatória inicial.19,20 Enfim, a mitigação de direitos, a negação do sistema acusatório no processo penal, a mentalidade inquisitória ainda habita o imaginário de muitos por essas bandas.
Vimos julgadores afirmarem que não concederiam liberdade ou antecipariam progressão de regime de cumprimento de pena em razão da possibilidade de contágio pela Covid-19 como argumento que somente os astronautas que estavam na órbita terrestre estariam livres de se infectarem, logo, não faria sentido cumprir as determinações do CNJ, negando o direito pleiteado21.
O que se percebe é uma enorme resistência de cumprir as recomendações que dizem respeito à liberdade, mas uma facilidade muito grande em adotar medidas que mitigam direitos individuais consagrados, como se nota com a suspensão das audiências de custódia, a realização de instrução criminal por videoconferência, a entrega, já gravada de sustentações orais para serem encartadas nos autos, e agora a proposta de julgamento pelo Tribunal do Júri se valendo também da videoconferência e tudo isso em nome da eficiência e duração razoável do processo.
Me pergunto, às vezes, quando foi que decidimos e aceitamos que nosso maior mal nas discussões de natureza penal e processual penal é simplesmente a duração do processo. Com essa ideia de eficiência, muito relacionada com uma visão econômica e utilitarista, não há nenhum pudor em deixar de lado o devido processo legal (que para muitos é mero formalismo que obsta um julgamento rápido e eficiente) e se preocupar apenas com o final. O que preocupa, e aqui é uma posição pessoal, não é o fim do processo, mas como chegamos a esse fim. No Direito os meios sempre qualificam os fins. Nosso qualificador de fins é a observância litúrgica do devido processo legal. E que fique o registro histórico, não há justificativa, ao meu sentir, mesmo diante do momento de crise que vivemos, para aceitarmos a mitigação de direitos e garantias individuais em nome da celeridade, da eficiência, com as vênias devidas a quem acha que processo penal se resume ao número de decisões e sentenças proferidas por mês e que isso é reflexo de sua eficiência. É preciso que tenhamos a plena ciência e consciência de que estamos aceitando negociar direitos e conquistas históricas. Nossas digitais estarão cravadas para a posteridade.
Processo penal eficiente, na modesta opinião deste escriba, é aquele que se desenvolve tendo como limitador as balizas legais historicamente construídas, é o processo penal que volte a se importar com o Direito, como salvaguarda de direitos.
Infelizmente, em nossa percepção, as vocações reveladas nesse período de crise nos remetem ao processo penal influenciado em sua gênese pelo Codice Rocco, ou seja, um processo penal do século passado, onde a instrumentalidade é o que mais importa. Devemos ficar vigilantes e diligentes.
4 Epílogo
Diante do contexto que se apresenta, e com a glamourização das ferramentas tecnológicas, por exemplo, como o futuro do Direito, sem levar em conta que somos humanos e que jamais algoritmos conseguirão replicar sentimentos e percepções que nos sãos inerentes como animais sentimentais, que nos caracterizam como espécie, e que o Direito é um reflexo de tudo isso, coisa de humanos feita para humanos, corremos o risco de transformarmos esse mesmo Direito em algo frio, em algo mecanizado, robotizado e, como consequência, arbitrário.
É preciso nos livrar do autoritarismo estrutural impregnado nas mentes de muitos trabalhadores do direito nesses tempos. Não dá mais, não se pode mais conceber que o processo penal funcione como um súdito que deve atender aos desejos do rei. O processo penal moderno atende, acima de tudo, aos interesses do indivíduo, o colocando, ao menos de forma abstrata, em condições de equilíbrio entre o poder do Estado e a liberdade do ser humano. E confesso, tenho temor de que essas medidas de arbítrio de ocasião, fundadas na excepcionalidade do momento, se tornem a regra geral no futuro. É preciso coragem de enfrentar isso agora, mesmo sendo a ideia considerada contra majoritária diante aqueles que não enxergam ou não querem enxergar o risco que isso significa.
Neste ponto, vale o destaque ao artigo publicado pelo historiador Yuval Noah Harari: “O mundo depois do coronavírus22: Essa tempestade passará. Porém as decisões que tomarmos hoje mudarão nossa vida nos anos vindouros.
A humanidade hoje enfrenta uma crise global. Talvez a maior crise de nossa geração. As decisões que as pessoas e os governos tomarão nas próximas semanas provavelmente moldem o mundo nos anos vindouros. Não somente moldarão nossos sistemas de saúde, mas também nossa economia, nossa política e nossa cultura. Devemos atuar rápida e decididamente. Também devemos levar em conta as consequências do longo prazo de nossas ações. Quando escolhemos entre alternativas, não somente devemos nos perguntar como superar a ameaça imediata, mas também que tipo de mundo habitaremos assim que passar a tormenta. Sim, passará. A humanidade sobreviverá, a maioria de nós seguiremos vivos, porém habitaremos um mundo diferente.
Muitas medidas de emergência de curto prazo se tornarão em hábitos de vida. Essa é a natureza das emergências. Nesta toada, o alerta já deve estar ligado. As propostas e ações que vemos nascer dos órgãos responsáveis pela prestação jurisdicional penal, já apontam pela mitigação de direitos individuais, em nome da eficiência, da excepcionalidade do momento. E depois que tudo isso passar? E vai passar. O que herdaremos como civilização? O que herdaremos como estudiosos e trabalhadores do Direito? Evoluiremos nas conquistas históricas limitadoras do jus puniendi ou inauguraremos uma nova era de autoritarismo? Fica a reflexão, bem como o alerta.
Notas
1 Disponível em: https://canalcienciascriminais.com.br/processo-penal-brasileiro/.
2 Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/604868/habeas-corpus-hc-99373-ms-2008-0017724-5?ref=serp.
3 Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/524666832/agravo-regimental-no-recurso-especial-agrg-noresp-1639763-to-2016-0310676-6?ref=serp
4 Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/201447219/recurso-especial-resp-1167075-ce-2009-022360 3-5?ref=serp
5 Disponível em: https://consultor-juridico.jusbrasil.com.br/noticias/112091921/juiz-pode-inquirir-testemunha-na-ausencia-do-promotor?ref=serp
6 Disponível em: https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21987528/apelacao-crime-acr-70047373444-rs-tjrs?ref=serp..
7 Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/701.
8 Disponível em: https://tj-ma.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/4809541/habeas-corpus-hc-116952000-ma?ref=serp.
9 LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
10 STF 1ª T. – HC 73.338/RJ – Rel. Celso de Mello – j. 13.08.96 – RT 161/264).
11 “O processo não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (direito penal), senão que desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal)”. LOPES JR, Aury. Fundamentos do Processo Penal – Introdução Crítica – 6. ed. 2020. Editora Saraiva.
12 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf.
13 Op. Cit.
14 ATO NORMATIVO – 0004587-94.2020.2.00.0000. CNJ.
15 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-24/diego-simao-juri-videoconferencia-inconstitucional.
16 Artigo 319 do CPP.
17 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-24/diego-simao-juri-videoconferencia-inconstitucional.
18 In Manual de processo penal. 7. ed. Belo Horizonte: Editora D’Placido, 2018. p. 735.
19 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YVnnuXpcEwk.
20 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uoJcqgQGszE.
21 “Dos cerca de 7.780.000.000 habitantes do planeta Terra, apenas três: Andrew Morgan, Oleg Skripocka e Jessica Meier, ocupantes da estação espacial internacional, o primeiro há 256 dias e os outros dois há 189 dias, portanto há mais de seis meses, por ora não estão sujeitos à contaminação pelo famigerado coronavírus”.
22 Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/597469-o-mundo-depois-do-coronavirus-artigo-de-yuval-noah-harari.
Ronny Ton Zanotelli
Formou-se em direito pelo Centro Universitário Luterano de Ji-Paraná (Ceulji/Ulbra). Tem experiência na área de Direito Público. Atualmente atua como advogado criminalista. É professor universitário.