Uma análise sobre os contratos comerciais no ramo de combustíveis em tempos de pandemia

SUMÁRIO

1. Introdução

2. Do interesse social mútuo e necessário

3. Da fidelidade (exclusividade) inserida nos contratos de compra e venda mercantil (CVM) entre distribuidoras e postos de combustíveis

4. Do contrato com antecipação de bonificação

5. Do questionamento sobre exclusividade contratual diante de mudança mercadológica entre preços e prazos

6. Das Tomadas de Consultas Públicas (TCPs)

7. Da flexibilização contratual por algumas distribuidoras nestes tempos de pandemia

8. Considerações finais

1. Introdução

Num breve relato sobre este assunto, e após quase 27 anos atuando neste segmento de combustíveis, seja no lado comercial quanto jurídico, me deparei com inúmeros tipos de contratos celebrados entre as distribuidoras de derivados de petróleo e seus clientes, leia-se neste caso, os proprietários de postos de revenda de combustíveis, mais conhecidos como postos de gasolina. Abordaremos alguns tópicos desta matéria sobre as relações contratuais, em especial as celebradas nestes tempos de pandemia.

2. Do interesse social mútuo e necessário

Preliminarmente, assim como previsto nos ditames dos arts. 421 e seguintes do Código Civil Brasileiro, Título V “Dos contratos em geral”, Cap. I “Disposições gerais”, as modalidades de contrato passam primeiramente pela liberdade de contratar que será exercida em razão e nos limites da função social que por sua vez respalda-se na segurança jurídica que proporciona a ambas as partes em estabelecer os parâmetros para a  – parceria – que está sendo firmada.

Parceria significa uma harmoniosa convivência comercial que visa atender ambos os interesses firmados na vigência dos contratos entre as partes, o que leva ao fim estipulado no objeto do contrato.

Na área de revenda de combustíveis temos a presença de uma distribuidora de derivados de petróleo que é impedida, legalmente, de vender seus produtos de forma direta ao consumidor. A referida distribuidora é obrigada a efetuar suas vendas através de um posto revendedor.

Em sintonia com as regras vigentes no cenário nacional, as distribuidoras de combustíveis não possuem permissão para operar postos revendedores de combustíveis automotivos, com exceção apenas dos chamados “posto escola”, utilizados como laboratório de ensaio, para adequação às inovações do mercado, aprimoramento no atendimento etc.

Destarte, toma-se por exemplo o que vem acontecendo nos últimos anos, quando o mercado de combustíveis vem sofrendo mudanças muito acentuadas em razão do impacto que a pandemia da Covid-19 trouxe, e a redução significativa dos volumes de combustíveis contratado e vendidos, principalmente entre os meses de março a agosto de 2020.

3. Da fidelidade (exclusividade) inserida nos contratos de compra e venda mercantil (CVM) entre distribuidoras e postos de combustíveis

Neste tópico encontramos muitas e diversas inconsistências contratuais que geram um número muito grande de ações judiciais por parte dos donos de postos de gasolina, como ações revisionais, rescisórias, obrigação de atender ou não atender a determinados dispositivos etc., acrescentando-se os também inúmeros pedidos de tutelas antecipadas nas suas modalidades, as quais, geralmente, objetivam a suspensão do cumprimento do contrato em vigor, para que esses proprietários de postos de gasolina possam, durante o curso do processo judicial ou até o julgamento do mérito, comprarem de qualquer outra distribuidora que lhes forneçam condições mercantis melhores do que a que se encontram vinculados contratualmente.

O maior embate entre os contratantes, de maneira geral, remanesce sobre as condições mercadológicas de preço e prazo que a distribuidora com a qual estão vinculados vem praticando. Ressalte-se que quase sempre as distribuidoras não permitem colocar nos termos contratuais condições de preço e prazo,  limitando-se, quando muito, a registrar um compromisso de prática de preços condizentes com o mercado, o que, data vênia, é bem vago para uma proposição de ação judicial que visa a adequação à realidade da concorrência, o que força o posto a dar descontos que vão impactar no seu faturamento mensal, com um agravante de que com a queda das vendas, o posto se vê impedido de cumprir com o volume de compras estipulado no contratado com a distribuidora, o que acarreta um desequilíbrio contratual.

4. Do contrato com antecipação de bonificação

Atualmente, esta modalidade de contrato com pagamento antecipado de bonificação pelas vendas (volumes comprados pelo posto de revenda), que, em tese, serão alcançadas, acaba por deixar o contratante, ou seja, o posto de revenda, em situação de obrigação contratual já que recebeu valores por suposto volume a ser comprado e vendido aos consumidores. Infelizmente, na prática, geralmente acontece que, quando o posto de gasolina recebe a referida bonificação, se vê diante das contingências do mercado, quais a concorrência tênue, preços e prazo com bom retorno financeiro para o dono do posto contratante etc. Entretanto, basta uma pequena mudança no mercado de combustíveis como, por exemplo, os reajustes de preços pela Petrobrás que são repassados às distribuidoras que, por sua vez, repassam aos donos de postos: é aí que começam as divergências, pois quando ocorre tal situação, ninguém pode prever que distribuidora tinha estoque mais bem preenchido do que a outra, que distribuidora teve ganho financeiro mais vantajoso que a outra, que distribuidora se encontrava em condições melhores para baixar seus preços e adequá-los à realidade do mercado para seus clientes (postos de revenda) com os quais tinha contratos de exclusividade etc. Nesse cenário caótico, os postos que compram com os preços reajustados sofrem com a concorrência dos outros postos que compraram com um valor menor e podem revender aos consumidores com estes descontos, tomando-lhes clientes com a oferta de preços mais baixos, e o posto prejudicado está preso àquela distribuidora por força contratual de exclusividade.

5. Do questionamento sobre exclusividade contratual diante de mudança mercadológica entre preços e prazos

Em virtude dessas condições mercadológicas, a cláusula contratual de exclusividade vem sendo debatida nos tribunais há muitos anos. Uma corrente mais antiga defende a ideia de que o contrato deve ser mantido do jeito que foi celebrado, de modo que não sejam geradas incertezas jurídicas ferindo os preceitos do pacta sunt servanda. De outra sorte, em alguns tribunais, vem-se adotando a tese do rebus sic stantibus a qual permite a flexibilização das condições contratuais para que elas não inviabilizem uma adequação à realidade comercial, a exemplo da que passamos atualmente com a pandemia que causou uma grave retração mercantil.

Somos favoráveis a segunda tese citada acima, dado que na atualidade as mudanças ocorrem numa velocidade sem precedentes, na qual as relações comerciais, firmadas contratualmente, precisam se adequar a essas transformações, sob pena de que uma parte venha sempre a se ver prejudicada em virtude da imutabilidade das cláusulas contidas no instrumento contratual celebrado.

6. Das tomadas de Consultas Públicas (TCPS)

Neste diapasão, acrescento o contributo da matéria publicada no portal Consultor Jurídico, escrita pelo colega João Grandino Rodas, advogado, economista e professor, que tece, com perspicácia, algumas considerações sobre as relações entre distribuidoras e posto de revenda, destacando, igualmente, a exclusividade contratual que tem na Agência Nacional do Petróleo (ANP) a agência reguladora da atividade a saber, in verbis:

A Lei n. 9.478, de 6 de agosto de 1997, extinguiu o monopólio da Petrobrás com relação às atividades de pesquisa, exploração, produção e refino de petróleo e gás natural, bem como criou a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), órgão regulador da indústria do petróleo, cuja implantação se deu pelo Decreto n. 2.455, de 14 janeiro de 1998. Outras empresas passaram a poder exercer as atividades acima, que continuam a ser monopólio da União, desde que haja concessão, autorização ou contratação.

As agências reguladoras, cujo múnus é fiscalizar, controlar e regulamentar, são dotadas de poder normativo, sendo obrigadas por lei a realizar consultas públicas. Por meio dessas consultas, as agências recebem indicações e críticas dos administrados, que as ajudam na formulação de políticas públicas, atos regulatórios etc.

A ANP utiliza-se desse mecanismo de publicidade e transparência que confere legitimidade democrática, tendo, ultimamente, chamado a sociedade, por meio de tomadas de consultas públicas (TCPs), a participar da revisão das regras regulatórias aplicáveis ao mercado de combustíveis. Tem-se discutido temas que vão da transparência de preços, venda direta de etanol pelas usinas aos postos varejistas e flexibilização da verticalização até o fim da chamada fidelidade à bandeira.

Presentemente, a ANP almeja, em suma: (i) no concernente à verticalização, rediscutir a vedação regulatória à integração vertical, que limita uma série de relações entre diferentes elos da cadeia de combustíveis; e (ii) descontinuar a tutela regulatória de fidelidade à bandeira. Como parte do processo estão, no momento, em foco as TCPs 3 e 4/2018, para cujo debate tecem-se os seguintes comentários.

A TPC 3/2018 objetiva repensar as regras de verticalização, cujo desdobramento poderá resultar na possibilidade de extinguir a atual segregação de elos existentes na cadeia de produção, distribuição e revenda.

Consoante as regras atuais brasileiras, as distribuidoras de combustíveis não têm permissão para operar postos revendedores de combustíveis automotivos, excetuando-se os postos-escola, cuja finalidade, como a própria denominação indica, é testar novas tecnologias e desenvolver novos produtos. Igualmente, as refinarias não podem vender diretamente aos transportadores-revendedores retalhistas (TRR), assim como aos produtores de etanol é vedado vender a revendedores de combustíveis, entre outros.

A proposta da TCP 3/2018, sob o argumento de eliminar o efeito da “dupla margem” e de se garantir um pretenso ganho logístico na eliminação de uma etapa da cadeia, beneficiaria consumidores com a redução equivalente nos preços praticados.

A despeito do objetivo louvável da iniciativa, intervenções estatais pretendidas, sem profundo estudo prévio de impacto regulatório, em que se estude, em todos os seus aspectos, a modelagem atual do mercado e se avalie, minuciosamente, cenários possíveis, podem ser contraproducentes. Sublinhe-se, que, no presente caso, não se tem notícia de estudo detalhado que respalde o desiderato da ANP.

Melhor sorte não parece ter a TPC 4/2018, relativa à tutela regulatória dos contratos de exclusividade, concluídos entre distribuidoras e postos revendedores. Diferentemente do que uma perquirição apressada poderia sugerir, não se pode imaginar que a questão da exclusividade diga respeito apenas às relações privadas, afetando tão-somente os interesses das partes contratantes. Por atingir diretamente o consumidor, o tema reveste-se de interesse público (GN).

Por seu turno, a eliminação da tutela regulatória de fidelidade à bandeira não propiciará aumento da concorrência no setor nem garantirá vantagens ao consumidor. Tal ação poderá, na verdade, ocasionar mais prejuízos ao consumidor, pois, além de fontes confiáveis de abastecimento, o atual modelo garante ao consumidor qualidade do produto vendido e competição no preço. Eliminar a tutela regulatória aumentaria o risco de o consumidor adquirir produtos sem a devida garantia de procedência, agravando sua vulnerabilidade (GN).

É considerável o número de consumidores enganados por vício de qualidade no combustível adquirido, devendo ser preocupação permanente da ANP adotar medidas que diminuam essa incidência. Por outro lado, a existência do contrato de exclusividade e a regra de fidelidade à bandeira geram eficiências econômicas não desprezíveis, dando segurança aos investimentos a serem realizados no setor (GN).

A expansão de redes é indispensável para aumentar as opções aos consumidores. Entretanto, sem garantia mínima de retorno, as distribuidoras dificilmente sentir-se-ão incentivadas a realizar tal investimento. É necessário cautela na formulação modificativa desejada, para que os problemas do setor não se agravem, ao invés de serem minorados. O direcionamento dado pela ANP é de suma importância, pois as ações colimadas atingirão setor estratégico para o desenvolvimento do Brasil, setor esse responsável pelo abastecimento nacional, que já padece de questões até o momento não enfrentadas pelo poder público.

Propõe-se que a realização de mudança estrutural no setor de combustíveis, por conta da sua relevância para o desenvolvimento nacional, deva ser precedido de ampla discussão de estudo prévio e fundamentado dos impactos dessas intervenções regulatórias, de que constem, explicitamente, os custos reais dessas mudanças a serem suportados por toda a sociedade.

7. Da flexibilização contratual por algumas distribuidoras nestes tempos de pandemia

Nota-se, felizmente, que algumas distribuidoras já vêm se adequando às mudanças do mercado ocasionadas pela pandemia da Covid-19. A seguir transcrevemos matéria publicada em 30 de março deste ano no portal Terra que nos mostra que a negociação via flexibilização dos contratos ainda é o melhor e mais rápido caminho para atingir o objetivo contratual, a bem da verdadeira “parceria” comercial citada no preâmbulo deste artigo:

A distribuidora de combustíveis ALE, quarta maior do país, criou um pacote de medidas para apoiar os revendedores da Rede e os grandes consumidores durante a pandemia de Covid-19. As iniciativas têm como objetivo possibilitar maior prazo de pagamento em contratos e serviços, além de flexibilizá-los. A companhia também passará a oferecer todos os cursos EAD (educação a distância) da Academia Corporativa – plataforma de capacitação da ALE – gratuitamente, nos meses de abril e maio, para os empresários e equipes dos postos de combustíveis e serviços se capacitarem ainda mais durante esse período.

A ALE sempre prezou pela flexibilidade no contrato de fornecimento de produtos. Por isso, nos próximos três meses (abril, maio e junho), a companhia vai considerar que a defasagem na quantidade mensal de litros de combustíveis, estipulada em contrato, reflete a crise em função da pandemia. Sendo assim, ela será postergada no adicional de prazo de contrato, sem necessidade de penalidade ou de notificação.

As parcelas de contratos financeiros também serão mais flexíveis. A companhia vai refinanciar 50% das parcelas vencidas em abril, maio e junho por seis meses subsequentes. Para os postos que possuem contrato de locação ou sublocação, 50% das parcelas de abril e maio serão postergadas e repactuadas em seis meses.

Em relação às lojas de conveniência Entreposto, unidades de serviços automotivos ALE Express e Trocas Inteligentes exclusivas da marca, a ALE não cobra royalties variáveis. No caso da Entreposto, há uma mensalidade fixa para manutenção do programa, assessoria e acesso a parcerias. Nesse caso, as parcelas dos próximos três meses (abril, maio e junho) serão postergadas e posteriormente cobradas em seis vezes sem juros a partir de julho. Para as ALE Express e Trocas Inteligentes, não há cobrança de mensalidade.

Outra iniciativa se refere ao programa de incentivo e gestão dos negócios da companhia, o Clube ALE, direcionado aos revendedores. A companhia elege, entre os 1,5 mil postos em todo o país, o destaque do mês a partir da avaliação de vários indicadores, que vão desde a compra de produtos ALE até a qualidade do atendimento na pista. Em abril e maio, a escolha do “Melhor Posto do Mês” estará suspensa e todos os postos “Classe A”, que representam os mais bem colocados no programa, receberão a mesma premiação em REALES – moeda exclusiva de troca do programa – , sendo 50 mil REALES para o posto e 50 mil REALES, que serão divididos para a equipe cadastrada. O valor pode ser utilizado para resgatar uma série de itens disponíveis no catálogo do Clube ALE, entre eles materiais para uso coletivo no posto, pagamento de contas, recarga de celular e voucher de supermercado.

Além das mudanças no Clube ALE, todo o investimento em marketing, que é custeado pela companhia – ou seja, sem a cobrança de plano de marketing para a revenda – , será mantido. “Com isso, os patrocínios, divulgações nas plataformas digitais e ações promocionais serão retomados assim que houver o retorno nas atividades da temporada de 2020”, afirma o diretor de Marketing e Varejo da ALE, Diego Pires.

Segundo o presidente da ALE, Fulvius Tomelin, as medidas reforçam um dos principais diferenciais da companhia no mercado: a proximidade. “Para nós, ser próximo é construir uma relação que, dia a dia, ganha força pela confiança, colaboração e transparência não só nos momentos de crise. É com esse propósito que trabalhamos para oferecer uma proposta de valor para o nosso cliente, que melhor se adapte à realidade de cada negócio e de cada região. Em um cenário desafiador, como a pandemia de Covid-19, não poderia ser diferente. Entendemos que, juntos, precisamos estar cada vez mais próximos para conseguirmos superar este momento”, declara.

8. Considerações finais

Para finalizar esta breve análise notamos, com satisfação, a tendência a uma conscientização entre a parte hipersuficiente – representada pelas distribuidoras e a parte hipossuficiente – representada pelos postos revendedores que lhes faça buscar soluções alternativas para a flexibilização de seus contratos, soluções estas que atendam ao interesse comum das partes.

Sobre o autor

Luiz Antonio Rebelo Miralha

Advogado e professor, graduado pela Universidade da Amazônia – Unama (1990). Especialista em direito empresarial, econômico, industrial, tributário, civil e processo civil.

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