A cultura da punição em tempos de pandemia

Wuhan, China. 31 de dezembro de 2019. O dia que o mundo foi notificado sobre o mais devastador e cabalístico vírus do Século XXI. Três meses depois, e a humanidade é advertida sobre o avanço mundial da aterrorizante
doença.

O surto causado pelo coronavírus (Covid-19) foi considerado “Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional” – o mais alto nível de alerta da Organização Mundial de Saúde, conforme Regulamento Sanitário Internacional –, e em 11 de março de 2020, a OMS declara a pandemia.

À vista disso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), diante da necessidade de estabelecer procedimentos e regras com intuito de prevenir a propagação do coronavírus nos espaços de confinamento, bem como reduzir os riscos epidemiológicos de transmissão da doença, ao tempo que visava a preservação da saúde de agentes penais, recomendou aos tribunais e magistrados reavaliar as prisões provisórias, nos termos do art. 316, do Código de Processo Penal (Resolução n. 62, de 17 de março de 2020). A orientação do ministro e presidente do CNJ, ministro Dias Toffoli, pretendia alcançar, em especial, mulheres gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por criança de até doze anos ou por pessoa com deficiência, bem como idosos, indígenas, pessoas com deficiência ou que se enquadrem no grupo de risco do contágio do vírus.

Apesar disso, incontáveis foram os magistrados que não observaram a referida recomendação, mantendo superlotadas inúmeras unidades prisionais, que enfrentam, em condições sub-humanas, casos positivos de coronavírus em detentos.

Em Rondônia o cenário não foi diferente.

Com exceção da atenção dada por alguns magistrados a adolescentes e a mulheres (lactantes, grávidas e mães de crianças de até 12 anos), em geral, as prisões provisórias foram mantidas, indo de encontro à recomendação
que humanizou o tratamento aos acusados não condenados.

Não bastasse isso, no mês de maio do cor- rente ano, o Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia deu início à realização de audiências de instrução de réu preso por meio de video-conferência, ao argumento de que buscava garantir aos acusados que a suspensão dos atendimentos presenciais não prejudicasse o andamento dos processos.

Para tanto, dias antes promoveram uma força-tarefa com vistas a testar o sistema virtual, o que contou com a presença de magistrado, representante do Ministério Público e Defensoria Pública.

Ressalte-se: Advocacia não foi convidada para participar do “teste”, nem mesmo consultada sobre o novo regramento.

Com a medida, audiências serão realiza­das via videoconferência, por meio do pro­grama Google Meet, que deve reunir em ambiente virtual juiz, defensor público, promotor de justiça, testemunhas e o réu1.

Diante dessa postura, a conclusão é de uma verdadeira exclusão da classe. Como se “jus- tiça” pudesse ser promovida sem a presença do advogado.

E nessa toada, meses depois, a Advocacia continuou a ser ignorada.
Conforme matéria veiculada no site do Tribunal de Justiça, a instituição buscou apre- sentar feedback sobre a realização das audiências pela via virtual, novamente sem consultar o órgão que representa a classe de advogados. Certamente, o intuito do Judiciário era apre- sentar à sociedade um diagnóstico favorável, com dados e vantagens alcançadas nesse ínterim.2

E essas, indubitavelmente, são as razões pela qual a Advocacia não foi convidada a expor sobre a experiência da modalidade virtual de instrução de réu preso; a uma, porque apontaria todas as flagrantes violações de garantias constitucionais dos acusados; a duas, porque revelaria a insatisfação da classe com a transferência de obrigações exclusivas do Tribunal. Por consequência, das matérias veiculadas pela instituição citada, não verificamos qualquer referência ao número de processos-crime julgados, que promoveram a liberdade ou alteraram o regime de pena de forma a beneficiar réu preso. Mas sim, sobre o quantitativo de conciliação 3 que alcançaram quase meio milhão em acordos.

Como se vidas segregadas não importasse. A leitura de tudo que se apresenta é um verdadeiro descaso com os quase 14 (quatorze) mil confinados, dos quais grande parte trata-se ainda de presos provisórios.

A pandemia revelou a real inobservância dos direitos humanos dos presos pelo Judiciário e a evidente preocupação dos Tribunais: metas.

Com isso, reforçou o grave histórico da cultura da punição no Brasil, que teve um grande salto de confinados a partir de 2016, quando o Supremo Tribunal Federal passou a entender que o início de execução de pena após confirmação da decisão condenatória em segunda instância não ofendia o princípio constitucional da presunção da inocência.

Ressalte-se: Advocacia não foi convidada para participar do “teste”, nem mesmo consultada sobre o novo regramento.

Com a posição da Suprema Corte, o número de encarcerados aumentou em mais de 100 (cem) mil no período de um ano, e, com isso, o Brasil passou a ocupar a posição de 3º país do mundo com maior quantitativo de presos.
No final de 2016, havia uma média de 726 (setecentos e vinte e seis) mil presos. Antes disso, somavam 622 (seiscentos e vinte e dois) mil. Depois que o Brasil ultrapassou a Rússia para ocupar o 3º lugar como país que mais encarcera, hoje registra o quantitativo aproximado de 800 (oitocentos) mil encarcerados.

A prova de que a cultura da punição está enraizada nos tribunais são os dados da última década sobre a população carcerária, que revelam ter triplicado no país.

Como se prender fosse a resposta à redu- ção da criminalidade.

A confirmação de que essa linha severa de segregação não alcança o resultado pretendido é a continuidade crescente da prática de crimes. A exemplo do feminicídio, que em 2015 passou a estabelecer pena de 12 a 30 anos de reclusão. A gravidade da pena, por si, não foi suficiente para cessar a ocorrência de casos que diariamente ceifam a vida de mulheres, seja por razões que envolvam violência doméstica, seja por crime de ódio em razão do gênero.

Estudos realizados, em 2019, pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o Núcleo de Estudos de Violência da USP, confirmou que os casos de mulheres assassinadas aumentaram em comparação ao ano de 2018.
Em verdade, o país vivencia um momento que a sedução do discurso da punição nunca esteve tão em voga, mesmo diante de um cenário de mortes por um vírus que vem dizimando pessoas – e vale aqui rememorar que não se trata apenas dos segregados, mas também dos agentes penais que convivem diariamente com aqueles.
Ainda assim, prevalecem as decisões pelo encarceramento, operações policiais com cumprimento de ordem de prisão provisória, e manifestações de ódios que insistem ignorar o quantitativo de quase um milhão de presos, dos quais ressalta-se: quase 40% (quarenta por cento) sequer tiveram os processos sentenciados.

Tempos sombrios.

Uma sociedade movida a tirania, autoridades sedentas por repressão, o endurecimento do Judiciário, e a imprensa, com seu poder de persuasão. O clamor social para desumanizar a aplicação das penas, fortalece a predominância do punitivismo.

Presunção de inocência não passa de um princípio esquecido, inaplicado. Deu-se vez à “presunção de culpabilidade”. Rasga-se a Constituição. Não há, talvez, desde a abolição da escra­vidão, maior violação de direitos huma­nos no solo nacional. 4

Primeiro pune-se. Expõe o indivíduo na mídia e às redes sociais. Invadem sua casa e intimidade para realização de buscas. O priva do seu direito de liberdade. Encarcera-o em um ambiente indigno, superlotado, insalubre, úmido, com baixa claridade e doenças. Ignora seus direitos humanos. Retira sua dignidade.

E o processo penal ainda nem começou.

Aisla Carvalho

Advogada Criminalista. Feminista. Escritora. Palestrante. Colunista. Presidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas – Abracrim, em Rondônia. Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RO/ VHA. Ex-presidente da Comissão da Mulher Advogada em Vilhena-RO. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Uniron. Pós-graduada pela Escola da Magistratura do Estado de Rondônia (Emeron). Pós-graduanda em Penal e Processo Penal com ênfase em Tribunal do Júri. E-mail: [email protected] – Lattes: http://lattes.cnpq. br/7763511427095582

Notas

1 Audiências nas varas criminais devem ser retomadas com uso da tecnologia durante a pandemia. In: Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. Porto Velho, 17 de abril de 2020. Disponível em : https://www.tjro.jus.br/noticias/item/12375-audiencias-nas-varas-criminais-devem-ser-retomadas-com-uso-da-tecnologia-durante-a-pandemia. Acesso em: 28 jun. 2020..

2 Corregedoria do TJRO reúne juízes criminais para colher feedback sobre as audiências por videoconferência. In: Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. Porto Velho, 7 de maio de 2020. Disponível em: https://tjro.jus.br/noticias/item/12479-corregedoria-do-tjro-reune-juizes-criminais-para-colher-feedback-sobre-as-audiencias-por-videoconferencia. Acesso em: 28 jun. 2020.

3 Durante pandemia, audiências por videoconferência nos Cejuscs do TJRO rendem mais de R$ 400 mil em acordos. In: Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. Porto Velho, 24 de abril de 2020. Disponível em: https://tjro.jus.br/noticias/ item/12424-audiencias-por-videoconferencia-nos-cejuscs-do-tjro-rendem-mais-de-r-400-mil-em-acordos. Acesso em: 28 jun. 2020.

4 Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 347 (ADPF 347). Superior Tribunal de Federal. 17 de maio de 2020. Íntegra da decisão. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF347decisao. Covid19.pdf. Acesso em: 28 jun. 2020.