Covid-19 constitui doença grave apta a garantir a superpreferência no pagamento de precatórios

1 Introdução

Em plena pandemia, o Brasil busca por todos os meios garantir a sobrevivência física e financeira de seus cidadãos. Se, por um lado, as medidas de distanciamento social podem (ou pelo menos deveriam) evitar o avanço da contaminação, por outro lado é necessário garantir que as pessoas tenham acesso aos recursos financeiros indispensáveis para que possam consumar esse distanciamento.

De fato, não pode o Poder Público restringir um direito fundamental da pessoa humana sem fornecer-lhe a compensação necessária a recompor os danos causados pela restrição.

Nesse passo, em comparação com outros países, o Brasil ainda segue muito tímido – quase inerte – em criar mecanismos de compensação que resguardem financeiramente a sua população. O auxílio financeiro criado pela Lei n. 13.982, de 2 de abril de 2020, ainda não é capaz de suprir essa necessidade, pois atinge apenas uma parcela da população, embora, é claro, a parcela que mais sofre esses impactos. Sem recursos, o povo se vê diante da necessidade de optar por se expor ou ao vírus, ou à fome. Os que têm uma fonte de renda garantida, optam pelo isolamento. Os que não têm, vão às ruas em busca de seu sustento.

Nesse cenário caótico, todo e qualquer mecanismo de liberação de recursos já existente dentro da legislação em vigor deve ser tido como válido e urgente. Dentre eles, defendemos aqui a inclusão da Covid-19 como doença apta à liberação antecipada de precatórios.

2 A superpreferência constitucional no pagamento de precatórios

O precatório é um procedimento judicial consubstanciado em um ofício requisitório de valores, direcionado ao Presidente do Tribunal competente, por ter o ente público estatal (União, Estados, Municípios, Autarquias e Fundações) sido condenado ao pagamento de determinada quantia em processo que transitou em julgado. É um instituto que só existe no Brasil.

A primeira utilização desse termo “precatório” constou na Constituição Federal de 1934. Por serem os bens públicos impenhoráveis, criou-se a sistemática de precatórios para se ordenar uma fila cronológica de credores. Assim, foi concebido para moralizar o pagamento dos débitos estatais, criando uma sequência de critérios observando a Constituição Republicana.

Nesse cenário caótico, todo e qualquer mecanismo de liberação de recursos já existente dentro da legislação em vigor deve ser tido como válido e urgente. No sistema atual, os precatórios apresentados ao Presidente do Tribunal até 1º de julho de um ano devem ser incluídos no orçamento do ente público no ano vindouro para pagamento dentro daquele exercício financeiro.

Assim, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 100, deu as diretrizes:

Art. 100 – Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
§ 5º É obrigatória a inclusão, no orçamento das entidades de direito público, de verba necessária ao pagamento de seus débitos, oriundos de sentenças transitadas em julgado, constantes de precatórios judiciários apresentados até 1º de julho, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente.

Como, na prática, os precatórios não vinham sendo efetivamente pagos no exercício seguinte, criando uma fila longa e lenta que prejudica os credores, a Emenda Constitucional n. 62/2009 modificou profundamente o sistema de pagamento dos precatórios e trouxe uma série de inovações, entre elas, o direito dos idosos e portadores de doenças graves de receber antecipadamente os seus créditos, até determinados limites de valores. Tendo em vista que os precatórios de natureza alimentar já tinham preferência em relação aos créditos de natureza comum, essa modalidade passou a ser conhecida juridicamente como “superpreferência”. Sobreveio, ainda, a Emenda Constitucional n. 94/2016 que ampliou ainda mais esse direito, incluindo os portadores de deficiência e inserindo a possibilidade de essa preferência ser conferida aos sucessores dos titulares originários dos precatórios, de tal forma que atualmente essa garantia possui a seguinte redação, no § 2º do art. 100 da Constituição:

CF, art. 100.
§ 2º Os débitos de natureza alimentícia cujos titulares, originários ou por sucessão hereditária, tenham 60 (sessenta) anos de idade, ou sejam portadores de doença grave, ou pessoas com deficiência, assim definidos na forma da lei, serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, até o valor equivalente ao triplo fixado em lei para os fins do disposto no § 3º deste artigo, admitido o fracionamento para essa finalidade, sendo que o restante será pago na ordem cronológica de apresentação do precatório.” (Redação dada pela Emenda Constitucional n. 94, de 2016)

Indo um pouco mais além, a Emenda Constitucional n. 99/2017 instituiu um regime especial de pagamento de precatórios, e em relação aos entes públicos sujeitos a esse regime especial, elevou o teto da antecipação para o quíntuplo do valor da Requisição de Pequeno Valor (RPV), ao acrescentar ao art. 102 do ADCT o § 2º com a seguinte redação:

§ 2º Na vigência do regime especial previsto no art. 101 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, as preferências relativas à idade, ao estado de saúde e à deficiência serão atendidas até o valor equivalente ao quíntuplo fixado em lei para os fins do disposto no § 3º do art. 100 da Constituição Federal, admitido o fracionamento para essa finalidade, e o restante será pago em ordem cronológica de apresentação do precatório.

Em suma, a superpreferência que admite a antecipação do pagamento parcial ou total dos precatórios beneficia: a) os portadores de doenças graves; b) os idosos; c) os portadores de deficiência. Aqui, analisaremos a questão do enquadramento da Covid-19 no conceito de doença grave para essa finalidade.

3 A Covid-19 e a gravidade da pandemia

A doença Covid-19 foi primeiramente identificada em Wuhan, na China, em dezembro de 2019, e pode causar diversos sintomas, sendo o mais grave o desenvolvimento de doença respiratória grave, conduzindo o paciente à morte.

Rapidamente se disseminou tornando-se uma pandemia, assim declarada pela Organização Mundial da Saúde, cujos números de contaminação e mortes crescem freneticamente. Note-se, inevitavelmente, que a pandemia causada pela Covid-19 é um verdadeiro desastre e desencadeou um colapso no sistema de saúde brasileiro, tendo ainda desencadeado uma desestabilização social sistêmica e econômica, o que redundou em decretações generalizadas (em nível nacional, estadual e mesmo municipal) de Situação de Emergência. A Lei Federal n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, reconheceu juridicamente a existência da pandemia e estabeleceu uma série de “medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância nacional decorrente do coronavírus”, entre elas o isolamento social.

4 O enquadramento jurídico da Covid-19 na relação de doenças graves

Por ocasião da criação da superpreferência no pagamento de precatórios, os tribunais brasileiros abordaram com visões diferentes o conceito de “doença grave” para o enquadramento de uma doença nessa garantia. Buscando uniformizar esse entendimento em todo o Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução n. 115, de 29 de junho de 2010, optando por relacionar essas doenças. Essa lista vinha sendo considerada, por alguns tribunais, como supostamente taxativa.

Tendo em vista que os precatórios de natureza alimentar já tinham preferência em relação aos créditos de natureza comum, essa modalidade passou a ser conhecida juridicamente como “superpreferência”.

Entretanto, uma nova roupagem foi dada à uniformização das superpreferências com a superveniente Resolução n. 303, de 19 de dezembro de 2019, na qual o Conselho Nacional de Justiça modificou a formatação da regulamentação da matéria para abrir duas possibilidades, ao considerar doenças graves aquelas previstas na Lei n. 7.713/88 e suas alterações ou, ainda, as doenças graves assim consideradas pela medicina especializada, o que amplia as possibilidades de enquadramento.

Os arts. 9 e 11 da referida resolução assim dispõem:

Art. 9º. Os débitos de natureza alimentícia cujos titulares, originários ou por sucessão hereditária, sejam idosos, portadores de doença grave ou pessoas com deficiência, assim definidos na forma da lei, serão pagos com preferência sobre todos os demais, até a monta equivalente ao triplo fixado em lei como obrigação de pequeno valor, admitido o fracionamento do valor da execução para essa finalidade.

Art. 11. Para os fins do disposto nesta Seção, considera-se: (…)
II – portador de doença grave, o beneficiário acometido de moléstia indicada no inciso XIV do art. 6º da Lei n. 7.713, de 22 de dezembro de 1988, com a redação dada pela Lei n. 11.052, de 29 de dezembro de 2004, ou portador de doença considerada grave a partir de conclusão da medicina especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída após o início do processo (…) (grifo nosso)

Em relação à primeira hipótese, a Lei n. 7.713/88 relaciona como graves as seguintes doenças:

Art. 6º. Omissis
XIV – os proventos de aposentadoria ou reforma motivada por acidente em serviço e os percebidos pelos portadores de moléstia profissional, tuberculose ativa, alienação mental, esclerose múltipla, neoplasia maligna, cegueira, hanseníase, paralisia irreversível e incapacitante, cardiopatia grave, doença de Parkinson, espondiloartrose anquilosante, nefropatia grave, hepatopatia grave, estados avançados da doença de Paget (osteíte deformante), contaminação por radiação, síndrome da imunodeficiência adquirida, com base em conclusão da medicina especializada, mesmo que a doença tenha sido contraída depois da aposentadoria ou reforma (Redação dada pela Lei n. 11.052, de 2004). A relação das doenças graves admitidas pelo Conselho Nacional de Justiça, portanto, não é taxativa. Pois o próprio artigo 11, inciso II da Resolução n. 303/2019 utiliza-se do termo “OU” para especificar de forma indubitável que, além daquelas doenças relacionadas no artigo 6º da Lei n. 7.713, também serão assim admitidas a “doença considerada grave a partir de conclusão da medicina especializada”. Nenhuma legislação que estabeleça direitos a partir de doenças graves pode ser considerada taxativa. Faz parte das contingências ambientais o surgimento de novas doenças, ou o aumento da gravidade de doenças preexistentes, assim como, em sentido inverso, a redução da taxa de mortalidade e gravidade destas. A título de exemplo, a legislação supra transcrita considera como grave doença, tipificada como moléstia profissional, a hanseníase, que no contexto atual, pode ser considerada menos grave que o coronavírus em plena pandemia.

No caso, a Covid-19 já foi legalmente declarada doença grave pela Lei Federal n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que em seu art. 1º dispõe que “Esta lei dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus”; foi declarada grave pela Organização Mundial da Saúde; foi declarada grave pelo Decreto Legislativo n. 6, de 2020, expedido pelo Senado Federal no qual “reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar n. 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública”, entre outros instrumentos legislativos.

Sua gravidade já foi reconhecida pelo Conselho Nacional de Justiça na Resolução n. 313, de 11 de março de 2020, que estabeleceu um regime de funcionamento extraordinário do Poder Judiciário durante a pandemia e, entre as justificativas, remete à gravidade da doença:

CONSIDERANDO a declaração pública de pandemia em relação ao novo Coronavírus pela Organização Mundial da Saúde – OMS, de 11 de março de 2020, assim como a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional da OMS, de 30 de janeiro de 2020; CONSIDERANDO a Lei n. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre medidas para enfrentamento da situação de emergência em saúde pública de importância internacional decorrente do novo Coronavírus, bem como a Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional – ESPIN veiculada pela Portaria n. 188/ GM/MS, em 4 de fevereiro de 2020 (…) Resta evidente que a Covid-19, doença grave e em plena pandemia, atende ao requisito de “doença considerada grave a partir de conclusão da medicina especializada” (grifo nosso) de que trata o art. 11, inciso II, segunda parte, da Resolução n. 303/2019 do Conselho Nacional de Justiça.

Até mesmo porque a superpreferência criada pela Constituição Federal teve como nascedouro a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República previstos no art. 1º, inciso III da Constituição Federal, assim como a Lei n. 13.979/2020 em seu art. 3º § 2º preservou em favor de todas as pessoas afetadas pela emergência de saúde pública a garantia do pleno respeito à dignidade da pessoa humana (inciso III).

Tramita perante o Conselho Nacional de Justiça o Pedido de Providências n. 0003621-34.2020.2.00.0000, tendo como relatora a Conselheira Dra. Maria Cristiana Simões Amorim Ziouva, no qual foi requerida a inclusão da Covid-19 como doença grave, para fins de superpreferência, na própria Resolução n. 303/2019, o que poderia prevenir qualquer existência de posicionamentos conflitantes sobre o tema.

A Conselheira, em decisão que encontra-se pendente de julgamento de recurso, remeteu a análise dessa questão à esfera jurisdicional, mas antecipa-se em reconhecer desde logo não haver qualquer impedimento para que a doença seja considerada grave para essa finalidade específica, e mediante seu enquadramento na autorização dada pela Resolução n. 303. Do conteúdo da decisão, transcrevemos a seguinte parte:

No mesmo dispositivo concede certa margem de atuação ao órgão jurisdicional para, no caso concreto, julgar caracterizada ou não uma doença como grave, a partir da conclusão da medicina especializada. Nesse cenário, é de se ver que não impedimento para que a Covid-19 seja reconhecida como doença grave apta a respaldar o pagamento de precatórios com supedâneo no art. 9º da Resolução CNJ n. 303. Não obstante, tal reconhecimento deve ser levado a efeito no âmbito jurisdicional, a partir da comprovação por meio de laudos médicos especializados (…)” Mais adiante, a Relatora afirma que “este órgão de controle não desconhece a gravidade da situação excepcionalíssima de emergência em saúde pública de importância nacional e internacional decorrente do novo Coronavírus, tanto é que tem atuado com frequência quase que semanal, nas necessárias atualizações e adequações provocadas pelo quadro pandêmico. Nesse sentido, foram editadas as Resoluções CNJ n. 313 e suas atualizações (Resoluções CNJ n. 314 e 318), além de ter sido instituído Comitê para o acompanhamento e supervisão das medidas de prevenção ao contágio, dentre outras medidas. Todavia, o pedido apresentado pelos Requerentes somente poderá ser viabilizado na esfera jurisdicional, analisada a peculiar situação caso a caso.

O isolamento social decretado a partir da pandemia da Covid-19 nos traz um nebuloso caminho a percorrer, em relação ao qual não se sabe ainda medir tempo de duração, perspectivas de cura e as consequências em relação à economia.

Assim, não seria justo, nem lícito, que o credor de precatório acometido com a doença se mantivesse na fila aguardando o pagamento de seu crédito sem a preferência dada a outras doenças graves. Notícias já dão conta de que o Poder Judiciário aguarda para os próximos dias aumento do número de pedidos de antecipação com fundamento na doença Covid-19. Por isso é que, mesmo que se tenha uma decisão de caráter liminar para apagar o incêndio imediato, as decisões quanto ao mérito deveriam ser uniformizadas pelo Conselho Nacional de Justiça de forma a evitar apenas transferir uma situação atual para o futuro. A solução de uniformização será sempre a melhor para todos os envolvidos, até mesmo para evitar o desequilíbrio da prestação jurisdicional, não podendo ser deixado de lado o fato de que, havendo postergação dessas garantias constitucionais para o futuro, quando este futuro chegar, centenas ou milhares de cidadãos podem já ter tido essa garantia denegada no momento em que era necessária e inadiável.

5 Considerações finais

Dos fundamentos expostos acima, a nosso ver, a Covid-19 é doença grave que se enquadra na autorização para antecipação de pagamento de precatórios de caráter alimentar na modalidade de superpreferência definida pelo art. 9º da Resolução n. 303 do Conselho Nacional de Justiça, em regulamentação ao art. 100, § 2º da Constituição Federal. O espírito que moveu a Constituição e as Resoluções do CNJ deve ser considerado nesse momento de pandemia, pois a superpreferência tem como fundamentos dois fatores importantes: a dignidade da pessoa humana e a exigência de gastos que doenças graves geralmente possuem. Inobstante essa pretensão pode – e deve – ser formulada perante cada tribunal em sua atuação jurisdicional, o Conselho Nacional de Justiça deveria, em sua competência própria, uniformizar esse entendimento em todo o território nacional.

Hélio Vieira da Costa

Formado em direito pela Universidade Federal de Rondônia. Advogado na área sindical há 26 anos. Presidiu a Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Rondônia nos triênios 2007/2009 e 2010/2012. Autor dos livros Estatuto da OAB, Regulamento Geral e Código de Ética interpretados artigo por artigo (LTr, 2016), Honorários Advocatícios (LTr, 2018) e A Trajetória da Advocacia no Estado de Rondônia (2015).