Admirável mundo novo

“Dados são o novo petróleo”.

Várias vezes já vimos e ouvimos tal afirmação que demonstra o valor dos dados nessa nova economia digital. Em um mundo conectado, orientado pelas dinâmicas sócio-virtuais, expomos nossas características (e privacidade) em troca de um espaço público digital de relacionamento e consumo, e que nos entrega às facilidades e conveniências de um mundo orientado por automações e algoritmos (partes daquilo que chamamos de inteligência artificial).

As relações sociais hoje se constroem nesses ambientes virtuais, e da mesma forma os hábitos do mundo físico se transplantam ao mundo virtual, descrevendo em dados quem somos, quais as nossas preferências e até mesmo nossos segredos1.

Logo, a soma das tecnologias que compõem o chamado Big Data, com técnicas e métodos da ciência de dados (data science), aliados aos algoritmos de aprendizagem de máquina (machine learning) e aprendizagem profunda (deep learning) modelam a realidade a nossa volta, e revelam o valor do tratamento desses dados, verdadeiros ativos capazes de transformar modelos de negócios tradicionais. Mas e o que o direito tem a ver com tudo isso?

Jurimetria: dados, estatística e direito

Os Tribunais são verdadeiros bancos de dados jurídicos à disposição da sociedade: possuem arquivos de julgamentos, dados pessoais, material técnico de perícias e outras provas, petições contendo teses e argumentações jurídicas, dentre vários outros conjuntos de informação passíveis de processamento e tratamento. Além disso, se considerarmos que a atividade jurisdicional por si só nos dá sinais (ou seja, dados) tanto de julgamentos passados, como de tendência de julgamentos futuros, é possível estruturar modelos estatísticos descritivos e preditivos2 que permitam aos jurisdicionados, aos advogados e demais atores da Justiça exercerem seus direitos e atividades com mais e melhores informações.

E é exatamente esse o papel da Jurimetria, que consiste na aplicação de modelos quantitativos, estatísticos e probabilísticos ao direito, garantindo desta forma uma abordagem analítica tanto da práxis como da formulação de políticas públicas para a Justiça.

Trazendo tal instrumental para a advocacia, a aplicação de métodos analíticos à atividade do advogado permite a ele refinar os dados obtidos em sua atividade, trazendo informação e conhecimento3 como resultado (output) da sua prática cotidiana, possibilitando a ele e ao seu cliente a compreensão mais clara da situação processual, das consequências jurídicas de suas ações, e diversos outros insights possíveis tanto no plano da descrição, da inferência ou até mesmo da predição.

Qual é o impacto financeiro de uma determinada medida (como a realização de acordo, por exemplo) no estoque de processos de uma empresa? Ou qual a duração média dos processos consumeristas do seu cliente? Há diferença entre sentenças procedentes no JEC ou na Vara Cível? Qual é a média de condenação?

Tais questões parecem banais, mas precisam de um exercício exploratório4 na base dados do escritório, seja para organizar e tratar tais dados, seja para torná-los consumíveis pelo cliente com a ajuda de gráficos e outras ferramentas de visualização.

A descrição dos dados jurídicos pode parecer simples, mas exige método e conhecimento analítico, bem como domínio de ferramentas computacionais. No entanto, a sua prática trará valor à atividade jurídica, tornando esse conjunto de dados a chave para outras iniciativas gerenciais e insights negociais tanto do advogado, como do cliente, naquilo que se convém chamar de Business Intelligence (BI).

Falando no plano da predição, a partir de 2015, com o Código de Processo Civil, houve um grande avanço na estruturação de um sistema de precedentes que trouxe um elemento padronizador às decisões judiciais, vinculando juízes aos entendimentos firmados pelas Cortes, permitindo, assim, que modelos preditivos, ou algoritmos de aprendizagem de máquina (como classificações e também clusters) possam ser desenhados e aplicados para determinar resultados de ações judiciais. Ou seja, com um padrão de decisão formado, um algoritmo pode (mais facilmente ou com uma maior acurácia) determinar resultados de julgamentos ou estimar as consequências de um certo ato sabendo-se da possível resposta que será obtida do Poder Judiciário.

Modelos preditivos nos permitem responder a questionamentos probabilísticos de resultados, os quais não são, por sua vez, afirmações de certeza, mas permitem orientar para possíveis cenários, facilitando estratégias e tomadas de decisão por parte do cliente. Sendo assim, o papel do advogado nesse cenário deve ser garantir não só atuação jurisdicional, mas também informação de valor ao seu cliente, auxiliando, desta forma, em sua tomada de decisão.

Mas, deve um advogado saber programar ou ser um estatístico para adotar rotinas analíticas e orientadas a dados em seu escritório?

Nem só de direito vivem os advogados

A resposta para tal dúvida é um sonoro não. Diversos sistemas e profissionais estão disponíveis e prontos para fornecer os serviços técnicos necessários para implementar tais rotinas e atividades em um escritório de advocacia. Já estão disponíveis no mercado sistemas de prateleira, muitos deles online (web-based), para que os advogados possam agregar à sua atividade jurídica uma camada analítica e de tecnologia, capaz de gerar valor para além do direito.

Porém, devemos nos preparar para compreender essa interface entre direito e tecnologia, principalmente para compilar informações jurídicas e técnicas, e levá-las ao cliente, apresentando os resultados da atividade advocatícia.

O futurista jurídico Richard Susskind em seu livro Tomorrow’s Lawyer: An introduction to your future5 traça um cenário em que a atividade jurídica do amanhã será muito diferente ao exercício oitocentista que praticamos até então. Para o autor, diversas rotinas da atividade jurídica serão automatizadas; a forma de entrega e relacionamento com o cliente irá para o ambiente virtual; os litígios e as resoluções de disputa estarão em ambientes virtuais; e da mesma forma o profissional do direito deverá ser capaz de lidar com as tecnologias emergentes, de modo a direcioná-las a uma atividade jurídica eficiente e efetiva.

A descrição dos dados jurídicos pode parecer simples, mas exige método e conhecimento analítico, bem como domínio de ferramentas computacionais.

Neste contexto, ganham valor as aptidões que levam o profissional do direito para além do mundo jurídico, sendo necessário que ele abra outras portas do conhecimento e aumente seu repertório de modo a complementar com tais soft skills a entrega e a experiência dos serviços jurídicos (neste caso, suas hard skills) até então ofertados por seu escritório.

Dentro da realidade exponencial, não há mais espaço para o profissional especialista que se fecha em seu castelo da graduação, evitando contato com outras ciências ou outras formas de conhecimento, afastando da sua visão realidades diferenciadas que vão, a bem da verdade, lhe agregar mais experiências.

Hoje devemos ser mais generalistas do que especialistas6. Devemos ser profissionais em formato T (t-shaped professional), ou seja, devemos conhecer nossa atividade central profundamente, mas ao mesmo tempo nos cercamos de conhecimentos complementares que nos façam profissionais mais capacitados e preparados aos desafios que se impõem.

Por isso, em um mercado competitivo exercer a advocacia entregando ao cliente serviços jurídicos diferenciados, tanto no conteúdo como na apresentação e nos resultados, passa impreterivelmente pela compreensão e aplicação da análise de dados e da jurimetria; competências que, como vimos, vão auxiliar e aproximar a atividade jurídica, o advogado e o cliente.

Como dito acima, a advocacia precisa desse olhar analítico para garantir ao mesmo tempo sucesso na atividade-fim, ou seja, na atuação do processo, mas também eficiência na entrega de tal resultado, de modo a conciliar tanto o que se busca em juízo, mas também o resultado fora do processo. A atuação analítica é uma ferramenta capaz de colocar o advogado mais próximo dos objetivos não jurídicos do cliente, por exemplo, na redução quantitativa de processos do cliente, e por consequência na diminuição do impacto financeiro dos litígios.

Agregar estas aptidões à sua atividade lhe coloca em vantagem frente aos tantos outros profissionais7, lhe traz um diferencial ao mesmo tempo em que lhe auxilia no gerenciamento; afinal, como afirmou o futurista Alvin Toffler

os analfabetos do século 21 não são aqueles que não sabem ler e escrever, mas são aqueles que não sabem aprender, desaprender e reaprender.

Notas

  1. No artigo da Forbes “How Target Figured Out A Teen Girl Was Pregnant Before Her Father Did”, descreve-se o caso de uma cliente da empresa Target que recebeu cupons de desconto para produtos de gravidez, identificado pelo algoritmo preditivo da companhia, mesmo antes de seu pai saber que ela estava grávida. Disponível em: <https://www.forbes.com/sites/kashmirhill/2012/02/16/how-target-figured-out-a-teen-girl-was-pregnant-before-her-father-did/>.
  2.  A França baniu as iniciativas de criação de modelos preditivos da atuação jurisdicional. Disponível em: <https://abovethelaw.com/legal-innovation-center/2019/06/10/france-resists-judicial-ai-revolution/?rf=1>.
  3. Ver mais sobre a Hierarquia DIKW (Data-Information-Knowledge-Wisdom), que descreve uma hierarquia informacional em camadas agregadoras, dos dados à sabedoria, passando pela informação e conhecimento. Disponível em: <http://www.systems-thinking.org/dikw/dikw.htm>.
  4. Exploratory Data Analysis (EDA) ou análise exploratória de dados é a atividade de análise, organização, sumarização e visualização de um conjunto de dados. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Exploratory_data_analysis>.
  5. SUSSKIND, Richard. Tomorrow Lawyer’s: an introduction to your future. Oxford Press, 2017.
  6. EPSTEIN, David. Range: Why Generalists Triumph in a Specialized World. Riverhead Books, 2019.
  7.  Ver o artigo “The Case for Being a Multi-Hyphenate” no qual o autor Ryan Holiday defende que as pessoas mais bem sucedidas na história foram aquelas que possuíam múltiplas habilidades. Disponível em: <https://humanparts.medium.com/the-case-for-being-a-multi-hyphenate-216e2e19a30d>.

Edson Pontes Pinto

Advogado. Professor universitário. Mestre em direito (PUC/SP). Doutorando em Direito (PUC/RS).

Guilherme Pignaneli

Advogado. Mestre em direito (PUC/PR)