Os impactos da pandemia da Covid-19 nas eleições 2020: comentários à inconstitucionalidade da prorrogação dos mandatos eletivos

1. Introdução

As breves linhas do presente opinativo buscam demonstrar que o atual cenário de crise sanitária instalada em nosso país – a qual agrava sobremaneira a crise política preexistente – a pandemia da Covid-19 não justifica, constitucionalmente, a prorrogação de mandatos eletivos. A estabilidade constitucional, como se demonstrará, demanda observância aos princípios do tempo certo dos mandatos e da periodicidade das eleições.

Certo é que, desde antes do agravamento da crise sanitária em nosso país, causada pela Covid-19, temos enfrentado uma sequência de crises e tensões políticas, as quais, por vezes, implicaram em verdadeiro “xeque” às instituições da República.

Infelizmente, estes cenários de crise acabam ressuscitando temas custosos à democracia como um todo (intervenção militar, unificação de eleições, etc.), tornando o campo das ideias terreno fértil aos anseios de ruptura constitucional, a qual, como já abordamos outrora1, não deve ser uma opção válida.

Hodiernamente, o debate está centrado na “necessidade” de prorrogação dos mandatos de Prefeitos e Vereadores ao argumento de serem as eleições inviáveis no corrente ano, sob pena da saúde e segurança dos eleitores – o que, além de ser um engodo, é deveras inconstitucional.

2 Do contexto jurídico

Muito embora o mérito político da discussão afeta à prorrogação dos mandatos, encerre em si enorme hipocrisia2, o presente artigo se limitará à discussão jurídica. Juridicamente falando, aliás, a discussão sobre a inconstitucionalidade da prorrogação de mandatos não é nova.

Ainda sob a égide da Constituição de 1946, o Supremo Tribunal Federal, em meados de 1957, ao julgar a Representação de Inconstitucionalidade de n. 322 proveniente do Estado de Goiás, assim pontuou: Representação – Inconstitucionalidade de Ato da Assembleia Legislativa de Goiás que prorroga por mais um ano, os mandatos de Governador, Vice-Governador e Prefeito. A prorrogação de mandato fere a forma republicana e o princípio democrática da temporalidade das funções (Rel. Ministro Cândido Mota Filho, j. 18/9/1957).

Desde os primórdios do constitucionalismo pátrio, portanto, não é possível dissociar a representação popular da realização de eleições – a União, já em 1946, fora chamada a assegurar o princípio democrático, nos termos do art. 7º, inc. VII, alínea “a” e “c” da constituição vigente a época: Art 7º – O Governo federal não intervirá nos Estados salvo para: […] VII – assegurar a observância dos seguintes princípios: a) forma republicana representativa; […] c) temporariedade das funções eletivas, limitada a duração destas à das funções federais correspondentes;

Sob a vigência da Constituição da República de 1988, os preceitos de outrora são, igualmente, positivados:

Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei […]” A eleição popular é, pois, o único meio adequado ao provimento das funções políticas do governo.

A representação política nacional tem como fonte indeclinável o sufrágio universal e direto, não sendo admissível, portanto, a escolha para cargo eletivo por outra forma que não seja o sufrágio universal e direto – tudo a tempo certo. Então, se prorrogar mandato mediante deliberação legislativa, mesmo pela via constituinte derivada, equivale a eleger indiretamente o ocupante do cargo pelo prazo da prorrogação, a inconstitucionalidade da medida é patente.

A respeito disso, convém trazer as lições de Léo Ferreira Leoncy:3 A questão da duração dos mandatos estaduais sempre foi objeto de preocupação nas diversas Constituições Federais brasileiras. Na maioria delas, e como decorrência da “forma republicana” reiteradamente adotada, exigiu-se das autonomias estaduais a observância da “temporalidade das funções eleitas”, cuja violação ensejaria a intervenção da União no Estado-membro transgressor. Na técnica constitucional empregada, a duração dos mandatos estaduais foi de alguma forma atrelada aos “mesmos prazos” dos cargos federais correspondentes.

[…] Em relação ao tempo de duração de um mandato legislativo estadual, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que o seu correspondente período de quatro anos não pode ser modificado, para mais ou para menos, ainda que com a intenção de fazer coincidir o início desse período com o próprio começo do mandato do Chefe do Poder Executivo estadual. Efetivamente, não há possibilidade ou ferramenta jurídica válida para a prorrogação ou encurtamento dos mandatos eletivos em curso – nem mesmo pelo falso apelo “racional” de unificação das eleições ou pela desculpa da Covid-19.

Desde os primórdios do constitucionalismo pátrio, portanto, não é possível dissociar a representação popular da realização de eleições … Preceitos constitucionais sensíveis como a forma republicana, a temporalidade das funções eletivas e a periodicidade das eleições, não devem – e de fato não podem – estar ao arbítrio do constituinte derivado, muito menos ainda em tempos de crise, seja ela política, institucional ou, como no caso, sanitária. Afora as possibilidades totalitárias que se abrem em períodos assim, a medida seria inequívoca e flagrantemente inconstitucional.

3 Considerações finais

A prorrogação ou a supressão de mandatos eletivos é, sob a égide da Carta de 1988 e daquelas democraticamente promulgadas antes deste período, inconstitucional. Apenas a ruptura constitucional completa e permanente poderia justificar tal medida – nenhuma outra, nem mesmo aquela pensada pela via constitucional derivada, respeita a forma republicana de Estado e os princípios da temporalidade das funções eletivas e da periodicidade das eleições.

Portanto e sob a perspectiva jurídica, esse ensinamento precisa ser aprendido e aplicado, entendido, portanto, como verdade e moralidade, sob pena de que a grande “inovação” da prorrogação de mandatos ou da unificação das eleições retire a veste de uma “grande e bela inovação” e se consagre como a maior afronta ao Estado Democrático de Direito que já se teve registro no país.

Notas

1 Cf. ANDRADE, L. F. S. A ruptura constitucional não é a solução: a forma de eleição em caso de vacância dos cargos de presidente e de vice-presidente no último biênio. In: COSTA, I. G. et al. (Org.). Participação política: balanços e perspectivas. Curitiba: Instituto Memória, 2017, v. 1, p. 206-ss.
2 Interlocutores deste discurso são, em sua maioria, atuais detentores de mandato eletivo e, portanto, os maiores beneficiários desta medida. Não só, e muito curiosamente, muitos destes interlocutores advogam a retomada da “rotina econômica”, o que, na linha do que defendem em relação à prorrogação dos mandatos, importa em riscos à

Referências

ANDRADE, L. F. S. A ruptura constitucional não é a solução: a forma de eleição em caso de vacância dos cargos de presidente e de vice-presidente no último biênio. In: COSTA, I. G. et al. (Org.). Participação política: Balanços e Perspectivas. 1. ed. Curitiba: Instituto Memória, 2017, v. 1.

BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1946.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

BRASIL. Constituição (1988). Supremo Tribunal Federal. RP 322. Relator Ministro Cândido Mota. Acórdão. In: https://jurisprudencia.stf.jus.br, Brasília, DF, 18/9/1957. Acesso em: 2 jun. 2020.

CANOTILHO, J. J. Gomes et. al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014.

Luiz Felipe da Silva Andrade

Advogado. Sócio-fundador do Escritório Campanari, Gerhardth & Silva Andrade – Advogados Associados. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Lucas (UNISL); Pós-graduado em Direito Eleitoral e Processo Eleitoral pela Escola Judiciária Eleitoral e pela União das Escolas Superiores de Rondônia (Uniron); Pós-graduado em Advocacia Pública pelo Instituto para o Desenvolvimento Democrático – (IDDE) e pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (IGC). Membro e conselheiro fiscal da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep); Membro da Academia Brasileira de Direito Processual (Abdpro); Ex-secretário-geral da Comissão de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil seccional Rondônia (OAB/RO); Membro da Escola Superior da Advocacia, da seccional Rondônia (ESA/RO); e-mail: [email protected].

Erika Camargo Gerhardt

Advogada. Sócia-fundadora do Escritório Campanari, Gerhardth & Silva Andrade – Advogados Associados. Bacharel em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (Unitoledo). Pós-graduada em Direito Eleitoral e Processo Eleitoral pela Escola Judiciária Eleitoral e pela União das Escolas Superiores de Rondônia (Uniron). Pós-graduada em Direito Tributário pela PUC/SP; Membro Fundadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep); Ex-Presidente do Instituto de Direito Eleitoral do Estado de Rondônia (Idero); Ex-conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Rondônia (OAB-RO), quando atuou como secretária-geral; ex-coordenadora do curso de especialização em Direito e Processo Eleitoral. E-mail: [email protected].

Richard Campanari

Advogado. Sócio-fundador do Escritório Campanari, Gerhardt & Silva Andrade Advogados Associados. Formado pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR); Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Pós-graduado em Direito Público com ênfase em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR); Pós-graduado em Direito Empresarial pela Universidade de Araras (Uniararas); Pós-graduado em Direito Eleitoral e Processo Eleitoral pela Escola Judiciária Eleitoral e União das Escolas Superiores de Rondônia (Uniron). Ex-secretário-geral adjunto do Instituto de Direito Eleitoral do Estado de Rondônia (Idero). E-mail: [email protected].