Introdução
Objetivamos neste artigo efetuar uma comparação analítica da legislação processual-penal de proteção a mulheres vítimas de violência doméstica no ordenamento jurídico do Brasil e Portugal, bem como a legislação específica vigente aplicada.
A legislação processual-penal portuguesa é regida pelo Código de Processo Penal e pela lei n. 112, 7ª versão, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas (Portugal, 2009). Assim como no Brasil, de acordo com o Decreto-Lei n. 2.848, o crime de violência doméstica está disposto no Código Penal, mas não como um tipo de ilícito autônomo; está, sim, vinculado ao tipo penal de lesão corporal (Brasil, 2017). Questiona-se, desse modo, quais são as semelhanças e as diferenças da legislação processual-penal da proteção a mulheres vítimas de violência doméstica no ordenamento jurídico brasileiro e português.
A metodologia de pesquisa científica de que nos servimos para essa análise comparativa é qualitativo-dedutiva, por meio de uma investigação morfológica. Trata-se de uma pesquisa exploratória, bibliográfica, baseada em obras impressas em livros, artigos registrados em diversas mídias, doutrinas e jurisprudência sobre a temática.
Esperamos contribuir com a discussão e a reflexão sobre o tema, esclarecendo sobre a aplicação da lei em razão da violência doméstica nos países citados.
Análise comparativa: Brasil e Portugal – Violência doméstica
Registramos a seguir algumas comparações em relação à forma como são previstas as medidas e leis de proteção à mulher em ambos os países, entre elas: medidas protetivas de urgência/medidas de coação, depoimentos sobre a violência doméstica por meio de recursos tecnológicos de videoconferência ou teleconferência, prisão em flagrante, detenção etc.
No Brasil, verifica-se que a Lei Maria da Penha (lei n. 11.340/2006) foi sancionada com a finalidade de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e tem um sentido estrito, sendo de ação penal pública incondicionada cujo tipo de ação guarda propositura independe da vontade da vítima ou do seu representante legal (Brasil, 2006).
Em Portugal, o Código Penal (Lei n. 94, Portugal, 2017) estabelece um conceito de violência doméstica com espectro amplo, que abarca mulheres, homens, crianças, idosos e pessoas com deficiência, e busca sua solução não apenas com a tutela da(s) vítima(s) no âmbito social, laboral e institucional, mas também no do Processo Penal. Lá, esses crimes são de natureza penal pública (Lei n. 112, Portugal, 2009, 7ª versão ).
Em relação às medidas protetivas de urgência/medidas de coação, no Brasil, estão previstas na lei n. 11.340/2006:
Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:
I – conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas de urgência;
II – determinar o encaminhamento da ofendida ao órgão de assistência judiciária, quando for o caso;
III – comunicar ao Ministério Público para que adote as providências cabíveis.
Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida.
§ 1o As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado.
Em Portugal, as medidas de coação são meios processuais limitadores da liberdade pessoal, de natureza meramente cautelar, aplicáveis a arguidos sobre os quais recaiam fortes indícios da prática de um crime. Conforme versa o Código Penal nos seus artigos a) Termo de identidade e residência (art. 196º); b) Caução (art. 197º); c) Obrigação de apresentação periódica (art. 198º); d) Suspensão do exercício de profissão, de função, de atividade e de direitos (art. 199º); e) proibição e imposição de condutas (art. 200º); f) obrigação de permanência na habitação (art. 201º); g) Prisão preventiva (art. 202º), em referência à lei 112/2009 e suas versões atualizadas.
Art. 29.º – As Medidas de proteção à vítima
1 – Logo que tenha conhecimento da denúncia, sem prejuízo das medidas cautelares e de polícia já adotadas, o Ministério Público, caso não se decida pela avocação, determina ao órgão de polícia criminal, pela via mais expedita, a realização de atos processuais urgentes de aquisição de prova que habilitem, no mais curto período de tempo possível, sem exceder as 72 horas, à tomada de medidas de proteção à vítima e à promoção de medidas de coação relativamente ao arguido.
2 – Com a denúncia, a vítima é sempre encaminhada para as estruturas locais de apoio, em vista à elaboração de plano de segurança, caso não tenha sido elaborado pelo órgão de polícia criminal e para efeitos do recebimento de demais apoio legalmente previsto.
Em relação à prisão em flagrante e detenção, no Brasil, o agressor é detido e apresentado à autoridade competente, ao delegado(a) ou titular da delegacia especializada para o atendimento à mulher; sua prisão será feita nos termos do art. 312 do Código do Processo Penal:
A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
Será admitida a decretação da prisão preventiva (art. 313):
III – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência (redação dada pela lei n. 12.403, de 2011); em até 24 horas após a realização da prisão será encaminhado ao juiz competente o auto de prisão em flagrante (§1º do art. 306 do Código do Processo Penal Brasileiro).
Em Portugal, o art. 30 da lei de prevenção, proteção e assistência às vítimas de violência doméstica estabelece um regime de detenção mais aberto do que o previsto no Código Penal Brasileiro e, por conseguinte, mais adequado a realidade fática da violência doméstica. No caso de flagrante delito, a detenção permanece até o agente ser apresentado ao Ministério Público, instituição que depois decide se o apresenta para o julgamento em processo sumário, se o apresenta ao primeiro interrogatório judicial ou se o liberta.
Quanto à indenização/reparação em função da violência doméstica na legislação brasileira, não há previsão para que a ofendida em uma ação penal interponha uma ação por danos morais civilmente; no entanto, com a alteração do código do Processo Penal pela lei n. 11.719 de 20 de junho de 2008, foi modificado o art. 387, inciso IV, que passou a determinar que o juiz, ao proferir a sentença condenatória, fixará o valor mínimo para a reparação de danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelos ofendidos, sendo executado na Vara Cível (Brasil, 2008).
No ordenamento jurídico português, o ofendido poderá pleitear a indenização por danos morais; se o pedido de indenização não for feito no processo penal, nem em separado, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos; portanto, as vítimas do crime de violência doméstica tem direito à concessão de um adiantamento de indenização pelo Estado quando se encontrem preenchidos cumulativamente os requisitos dispostos no art. 5º da lei n. 104/2009 e suas alterações, de 14 de setembro.
Conclusão
Percebe-se que há notáveis diferenças nas normas brasileiras e portuguesas sobre as diversas formas de tutela da violência doméstica, de forma específica na norma como também nos códigos penais e processuais; porém, assim como no Brasil, a violência doméstica em Portugal assume a natureza de crime público, o que significa que o procedimento criminal não dependente da queixa por parte da vítima, bastando uma denúncia ou o conhecimento do crime para que o Ministério Público promova o processo.
Assim sendo, no Brasil, a violência doméstica contra a mulher estabelece-se em sentido estrito, pois está contida numa lei específica para a mulher; já em Portugal, o conceito de violência doméstica tem um sentido amplo, que abrange mulheres, homens, crianças e idosos, pessoas com deficiência, em suma, todos os sujeitos passivos desses crimes, conforme o art. 152 do Código Penal de Portugal, refere-se a todos os casos de violência doméstica, abrangendo todas as vítimas desse crime – lei n. 112 (Portugal, 2009).
Em ambos os ordenamentos jurídicos o inquérito é instaurado quando há notícia do crime, podendo qualquer pessoa denunciá-lo às autoridades competentes; é nessa fase obrigatória de investigação que se dá início o processo penal.
Referências
BRASIL. Lei n. 11.340 de 7 de agosto de 2006 – Lei Maria da Penha, que dispõe sobre mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, atualizada em 13 de outubro de 2011. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 18 dez. 2020.
BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. Acesso em: 27 dez. 2020.
BRASIL. Lei Federal n. 10.886. Acrescenta parágrafos ao art. 129 do Decreto-Lei n. 2.848 de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal – criando o tipo especial denominado “violência doméstica”, 2005 § (2004). Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.886.htm. Acesso em: 24 nov. 2020.
PORTUGAL. Lei n. 112/2009 de 16 de setembro. Estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas e revoga a lei n. 107/99 de 3 de agosto, e o Decreto-Lei n. 323/2000 de 19 de dezembro de 2009 Disponível em: www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1138&tabela=leis. Acesso em: 14 nov. 2020.
PORTUGAL. Lei n. 94 de 23 de agosto 2017. Altera o Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n. 400/82 de 23 de setembro; Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela lei n. 115/2009 de 12 de outubro; lei n. 33/2010. Disponível em: www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?tabela=leis&nid=2764&pagina=1&ficha=1. Acesso em: 12 dez. 2020.
Sobre a autora
Leiliane Borges Saraiva
Advogada, especialista em Direito Administrativo. Membro da Comissão de Direitos Humanos – OAB/RO (2016 – 2021). http://lattes.cnpq.br/128662295860322. E-mail: [email protected]