A recente Lei n. 14.039, de 17 de agosto de 2020, alterou o Estatuto da OAB para declarar que “Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei”.
O referido dispositivo veio à lume com a finalidade de colocar fim a uma divergência doutrinária e jurisprudencial a respeito da possibilidade de contratação, por órgãos públicos, de serviços advocatícios especializados, sem licitação.
Em regra, a defesa dos entes públicos compete aos seus procuradores. De fato, prevê o art. 132 da Constituição Federal:
“CF, Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas (Redação da EC 19/1998).”
A Constituição foi silente quanto às Procuradorias de municípios e autarquias. Diante da inexistência de norma específica em relação a estes, tem-se compreendido que podem ser representadas por meio de advogados ou escritórios de advocacia.
Grande parte dos municípios brasileiros possuem suas Procuradorias, organizadas em carreira e com ingresso por meio de concurso público. O mesmo ocorre com autarquias de grande porte. No entanto, é certo que não se pode exigir genericamente a implementação de uma Procuradoria em todos eles, pois em cenários de municípios com pequena população, as despesas para manter uma Procuradoria tornariam antieconômica essa implementação, além de, em muitos casos, sequer existir demanda suficiente para justificar sua existência.
A questão que causa polêmica, no entanto, é a seguinte: é possível a contratação direta de advogado ou sociedade de advogados para promover a defesa do ente público?
A princípio, não. A representação ativa e passiva do ente público cabe à sua Procuradoria, e a submissão ao concurso público é apta suficientemente a demonstrar que os Procuradores que a integram possuem conhecimento técnico que lhes permita promover essa defesa nos mais diversos ramos do direito. O mesmo ocorre com o(s) advogado(s) contratado(s) nos entes públicos de menor porte, em que não há uma Procuradoria instalada, pois presume-se que tenham sido contratados profissionais com entendimento técnico suficiente a promover essa representação judicial.
Inobstante essa regra, podem ocorrer situações jurídicas que exijam um conhecimento muito aprofundado de um determinado ramo do direito, e para essas situações, a Lei n. 8.666/93, que estabelece normas para licitações e contratos da administrativos, traz uma exceção:
“Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação […]”
Dentre os serviços técnicos de que trata o referido art. 13 da mesma Lei, encontra-se:
“Art. 13. Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:
V – patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas […]”
Nesses casos, para o patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas que exijam conhecimentos de natureza singular, ou notória especialização, não se pode exigir licitação como procedimento prévio à contratação do advogado, pois se torna inviável a competição.
A interpretação a tais dispositivos, no entanto, sempre gerou muita polêmica. Não raro, advogados e escritórios de advocacia eram acionados pelo Ministério Público com acusações de improbidade, sob a alegação de que a contratação sem licitação seria irregular, invocando a ausência de notória especialização no ramo, ou ausência de natureza singular dos serviços que foram prestados.
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil editou uma Súmula a respeito do tema, definindo que:
“Atendidos os requisitos do inciso II do art. 25 da Lei n. 8.666/93, é inexigível procedimento licitatório para contratação de serviços advocatícios pela Administração Pública, dada a singularidade da atividade, a notória especialização e a inviabilização objetiva de competição, sendo inaplicável à espécie o disposto no art. 89 (in totum) do referido diploma legal”(CFOAB, Súmula n. 4).
No entanto, o Superior Tribunal de Justiça sempre se direcionou pelo caminho de uma interpretação mais restritiva a essa possibilidade. A título de exemplo, destacamos o seguinte julgado:
“1. A contratação dos serviços descritos no art. 13 da Lei 8.666/93 sem licitação pressupõe que sejam de natureza singular, com profissionais de notória especialização. 2. A contratação de escritório de advocacia quando ausente a singularidade do objeto contatado e a notória especialização do prestador configura patente ilegalidade, enquadrando-se no conceito de improbidade administrativa, nos termos do art. 11, caput, e inciso I, que independe de dano ao erário ou de dolo ou culpa do agente.” (STJ, REsp 488.842/SP, Rel. p/Ac. Min. CASTRO MEIRA, 2ª Turma, publ. DJe 05/12/2008)
Era mais do que necessário, pois que urgente, definir com elementos mais objetivos o conceito de “notória especialização”, para que se pudesse proteger não só a administração pública, como também a advocacia contratada com base em tais preceitos.
A Lei n. 14.039/2020, visando fazer essa definição, inseriu no Estatuto da OAB o art. 3º-A, cujo parágrafo único apresenta os elementos que, objetivamente considerados, possam demonstrar a notória especialização:
“Art. 3º-A. Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei.
Parágrafo único. Considera-se notória especialização o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.”
Por conseguinte, o referido dispositivo torna mais fácil a identificação da especialização que possa direcionar a contratação dos serviços a determinado advogado ou escritório de advocacia, pois os elementos são bem mais objetivos.
Assim, o administrador poderá considerar: a) pós-graduação, mestrado e doutorado na área de atuação, o que pode ser comprovado mediante a certidão de conclusão expedida pela instituição de ensino; b) experiência no ramo, qual seja, a existência de atuação reiterada na área específica em que vai ocorrer a contratação, o que pode ser comprovado mediante cópias de petições iniciais, contestações, certidões, contratos e outros meios de demonstração da atuação profissional; c) estudos na área de atuação, o que pode ser comprovado através de certificados de participação em congressos, seminários e afins, na condição de inscrito; d) projeção no ramo na condição de palestrante, o que pode ser comprovado através de certidão de participação como palestrante, expedido pela instituição, órgão ou organizador do evento; e) publicações de livros, artigos e teses jurídicas em geral, que envolvam a área de atuação, o que pode ser demonstrado pela indicação da fonte de publicação; f) aparelhamento do escritório de advocacia, como, por exemplo, possuir em seu corpo técnico advogados especializados naquele ramo de atuação, o que pode ser comprovado mediante o contrato de constituição da sociedade; g) a condição de professor, proferindo aulas no ramo de atuação, o que pode ser comprovado mediante contrato de trabalho ou nomeação.
Essa relação é exemplificativa, e não exclui outras formas de comprovar os requisitos do dispositivo em comento, assim como não há necessidade de que todas essas formas de demonstração estejam presentes acumuladamente. O que se demonstra desde logo é que o novo dispositivo nos permite sair daquele campo genérico e aberto para nos inserirmos em um campo mais restritivo, dentro do qual se pode exigir a comprovação documental da referida “notória especialização”, o que também torna mais segura a prestação dos serviços por parte do advogado ou escritório contratado.
Outra questão que deve ser levada em consideração é a análise tardia de tais requisitos por órgãos de fiscalização, quando os serviços já foram prestados. O Superior Tribunal de Justiça vem reiteradamente decidindo que, prestados os serviços contratados, não se poderia cogitar da devolução dos valores recebidos, ainda que não se demonstre a notória especialização, o que caracterizaria enriquecimento ilícito. A título de exemplo:
“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONTRATAÇÃO DE ADVOGADO SEM LICITAÇÃO. DEVOLUÇÃO DOS VALORES RECEBIDOS. INVIABILIDADE. 1. Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo por suposto ato de improbidade – dispensa de licitação de contrato entre Administração municipal e o recorrido para prestação de serviços advocatícios. Pleiteou-se, na dita ação, a nulidade da dispensa de licitação, a condenação dos réus à reparação do dano causado ao erário, a restituição das importâncias pagas, a perda da função pública dos réus, o pagamento de multa civil, e a proibição de contratar com o Poder Público. 2. A sentença de mérito deu parcial procedência à ação de improbidade. E o acórdão recorrido deu parcial provimento ao recurso dos réus para declarar ser incabível a devolução dos valores percebidos pelo advogado durante o período do contrato em que os serviços foram prestados. Além do mais, o Tribunal entendeu que, por não ter havido dano patrimonial, seria inviável o pagamento da multa, que é fixada em proporção ao dano. 3. Recorre o Ministério Público da decisão da Corte de origem que excluiu algumas das penalidades imputadas ao agente ímprobo. 4. Inicialmente, é de se destacar que os órgãos julgadores não estão obrigados a examinar, mesmo com fins de prequestionamento, todas as teses levantadas pelo jurisdicionado durante um processo judicial, bastando que as decisões proferidas estejam devida e coerentemente fundamentadas, em obediência ao que determina o art. 93, inc. IX, da Lei Maior. Isso não caracteriza ofensa aos arts. 458, e 535, do CPC. Precedentes. 5. Quanto ao mérito, a questão cinge-se na contratação de advogado e contador por Câmara Municipal sem licitação, com fundamento no art. 25 da Lei n. 8.666/93 – que refere-se à inexigibilidade de licitação. 6. Conforme depreende-se do artigo citado acima, a contratação sem licitação, por inexigibilidade, deve estar vinculada à notória especialização do prestador de serviço, de forma a evidenciar que o seu trabalho é o mais adequado para a satisfação do objeto contratado e, sendo assim, inviável a competição entre outros profissionais. 7. No entanto, apesar do caso tratado nos autos não ser hipótese de dispensa de licitação, o pedido do recorrente de que o advogado efetue a devolução dos valores recebidos não pode prosperar. Este Tribunal entende que, se os serviços foram prestados, não há que se falar em devolução, sob pena de enriquecimento ilícito do Estado. 8. A interposição do recurso especial pela alínea c do permissivo constitucional também exige que o recorrente cumpra o disposto nos arts. 541, parágrafo único, do CPC, e 255, § 1º, a, e § 2º, do RISTJ, o que não ocorre na espécie. 9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, não provido.” (STJ, REsp 1238466/SP, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, 2ª Turma, publ. DJe 14/09/2011).
Esse entendimento não é um campo aberto para contratações irregulares, pois a mesma Corte vem entendendo pela legalidade da aplicação da multa civil:
“ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. SERVIÇO DE ADVOCACIA. CONTRATAÇÃO COM DISPENSA DE LICITAÇÃO. VIOLAÇÃO À LEI DE LICITAÇÕES (LEI 8.666/93, ARTS. 3º, 13 E 25) E À LEI DE IMPROBIDADE (LEI 8.429/92, ART. 11). EXECUÇÃO DOS SERVIÇOS CONTRATADOS. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AO ERÁRIO. APLICAÇÃO DE MULTA CIVIL EM PATAMAR MÍNIMO. 1. A contratação dos serviços descritos no art. 13 da Lei 8.666/93 sem licitação pressupõe que sejam de natureza singular, com profissionais de notória especialização. 2. A contratação de escritório de advocacia quando ausente a singularidade do objeto contatado e a notória especialização do prestador configura patente ilegalidade, enquadrando-se no conceito de improbidade administrativa, nos termos do art. 11, caput, e inciso I, que independe de dano ao erário ou de dolo ou culpa do agente. 3. A multa civil, que não ostenta feição indenizatória, é perfeitamente compatível com os atos de improbidade tipificados no art. 11 da Lei 8.429/92 (lesão aos princípios administrativos), independentemente de dano ao erário, dolo ou culpa do agente. 4. Patente a ilegalidade da contratação, impõe-se a nulidade do contrato celebrado, e, em razão da ausência de dano ao erário com a efetiva prestação dos serviços de advocacia contratados, deve ser aplicada apenas a multa civil, reduzida a patamar mínimo (10% do valor do contrato, atualizado desde a assinatura). 5. Recurso especial provido em parte.” (STJ, REsp 488.842/SP, Rel. p/Ac. Min. CASTRO MEIRA, 2ª Turma, publ. DJe 05/12/2008).
Desses fundamentos, infere-se que a Lei n. 14.039/2020, ao estabelecer critérios objetivos para a demonstração de notória especialização profissional da advocacia, para os fins de dispensa de licitação para a contratação de serviços de natureza singular, traz inegáveis benefícios. Permite que essa notória especialização seja demonstrada com elementos fáticos e documentais, segundo os critérios relacionados em lei. Beneficia, por um lado, a administração pública de um modo geral, pois fecha as portas à análise subjetiva e generalizada do conceito, que permitia a contratação de profissionais sem notória especialização. Beneficia, por outro lado, os integrantes da advocacia, pois torna mais seguro para estes a prestação de seus serviços nessas condições, sem que fiquem à mercê de uma segunda análise subjetiva desses requisitos por diversos outros órgãos como Tribunal de Contas, Ministério Público e Poder Judiciário.
Sobre a autora
Zênia Cernov
Advogada nas áreas trabalhista e administrativa. Autora dos livros Greve de Servidores Públicos (LTr, 2011), Estatuto da OAB, Regulamento Geral e Código de Ética interpretados (LTr, 2016) e Honorários Advocatícios (LTr, 2019). Membro da Academia Rondoniense de Letras, Ciências e Artes.