Estupro de vulnerável pode ser cometido por meio virtual?

A discussão é bastante complexa, controversa, uma verdadeira inovação para a sociedade, dado que não está tipificada, literalmente, na norma infraconstitucional.

Com a evolução da internet, as mídias sociais dominam e modificam o teatro social: Facebook, Instagram, Skype etc. transformam a sociedade, nesses ambientes tudo se torna imagem, exposição… Ficamos desnudos, desvelados, cada sujeito, potencialmente, torna-se o próprio objeto-propaganda no mundo virtual. Vivemos a época da sociedade do espetáculo, da imagem e da superficialidade digital.

Em contrapartida, a evolução dos tipos penais, as novas regras de interpretação judicial adaptam-se aos novos costumes.

Nessa perspectiva, como foco do artigo em comento, temos o crime previsto no art. 217-A do CP, introduzido pela lei n. 12.015, de 2009. A dicção do art. 217-A do CP estipula o seguinte: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém menor de 14 anos de idade.” A idade da vítima, menor de 14 anos, como sujeito passivo de atos libidinosos, ou conjunção carnal, por si só, é suficiente para tornar o fato formal e materialmente típico, segundo o entendimento majoritário; embora possa ser, excepcionalmente, mitigado a depender do contexto. Não se exigem violência ou grave ameaça contra a vítima – entendimento firmado na proteção integral à criança, constante no art. 227, caput, c/c o § 4º da Constituição Federal e de instrumentos internacionais (Resp 1.028.062/RS, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma. Julgado em 2/2/2016, DJe 23/2/2016).

As relações jurídicas precisam se adaptar à realidade vigente. A esse propósito, temos uma corrente vencida que busca “relativizar a vulnerabilidade de menores, ante o caráter cronológico, o que leva à atipicidade de certas condutas”. Outra corrente busca a manutenção do status quo do tipo penal, conforme previsto na expressão literal do tipo, que visa a proteção de crimes contra a dignidade sexual e da ofensa à dignidade da pessoa humana menor de 14 anos. A evolução dos tipos penais e as novas regras de interpretação judicial evoluem concomitantemente às mudanças dos costumes.

Assim, salienta-se a problemática posta em discursão nestas linhas: “Existe possibilidade jurídica de imputação ao crime de estupro de vulnerável, sem contato físico, seja presencialmente ou através de mídias sociais como, por exemplo, Facebook, Instagram, Skype?”

O conceito de “vulnerável”, no entanto, pode ter sua conotação ampliada e estender-se a qualquer pessoa em situação de fragilidade ou perigo.

A tal respeito, Fernando Capez prescreve:

Há, contudo, que se fazer uma distinção. Vulnerável é qualquer pessoa em situação de fragilidade ou perigo. A lei não se refere aqui à capacidade para consentir ou à maturidade sexual da vítima, mas ao fato de se encontrar em situação de maior fraqueza moral, social, cultural, fisiológica, biológica etc. Uma jovem menor, sexualmente experimentada e envolvida em prostituição pode atingir, às custas desse prematuro envolvimento, um amadurecimento precoce. Não se pode afirmar que seja incapaz de compreender o que faz. No entanto, é considerada vulnerável. A vulnerabilidade é um conceito novo muito mais abrangente, que leva em conta a necessidade de proteção do Estado em relação a certas pessoas ou situações (Capez, 2012, p. 103).

Depreende-se que o objetivo do legislador foi o de excluir a anuência dos menores para a descaracterização do delito.

O Superior Tribunal de Justiça, seguindo essa orientação, julgou processo de estupro de vulnerável a alguns políticos e empresários do Mato Grosso do Sul que participavam de uma rede de exploração de menores. Nesse julgado, firmou-se que o estupro de vulnerável pode se caracterizar mesmo que não haja contato físico com a vítima, circunstância em que se tem, por intermédio de sítios eletrônicos, exposição, manipulação de órgãos genitais, visualização de partes intimas de menores de forma lasciva (RHC 70.976/MS, DJe de 10/8/2016).

O nosso Código Penal adotou a teoria final da ação, ou finalista, onde Hans Welzel compreende que a ação humana e o exercício de atividade final com uma finalidade não apenas causal, ou seja, ação ou omissão voluntaria e consciente voltada para uma finalidade e não pura e simplesmente sujeita a uma causalidade. Nesse contexto, a conduta do agente no crime em comento tem uma finalidade certa: a satisfação de atos libidinosos, da lascívia do apetite sexual do agente contra menor sem discernimento do ato.

A doutrina penal moderna nos direciona à compressão de que a contemplação lasciva caracteriza atos libidinosos que são previstos no tipo do art. 217-A do Código Penal, não obstante não haja, para a consumação dos delitos, o contato propriamente físico entre a vítima e o agente.

As mídias sociais e os instrumentos eletrônicos de comunicação midiática, via de regra impossibilitam a “conjunção carnal”, no entanto, permitem atos libidinosos mesmo que não haja contato físico. A exibição, a manipulação do corpo, de forma recíproca pelo agente e pela vítima, com a dissimulação, a coação, a ameaça, a indução, a chantagem e o constrangimento de menores sem discernimento da realidade resultam em “ato libidinoso sem consentimento” e caracterizam o estupro de vulnerável.

A reafirmação do crime se dá em razão da caraterização do objeto jurídico, ou seja, a dignidade sexual do vulnerável e não da suposta liberdade sexual. Em tal delito não se discute se a vítima consentiu ou não com o ato sexual. Temos o elemento subjetivo do tipo, que é o dolo, caracterizado por meio de dois elementos, de acordo com a doutrina majoritária: o volitivo – que se refere à “vontade de praticar a infração penal”; e o intelectivo – que se refere à “consciência da conduta praticada e do respectivo resultado”, não sendo admitida a modalidade culposa por ausência de previsão legal.

Não deixa de ser menos importante a violência moral, uma variante de integração do tipo. O STJ expediu a seguinte decisão: “O delito imputado (estupro de vulnerável) ao recorrente teria sido praticado apenas mediante violência moral. Tais atos, por sua própria natureza, não deixam vestígios. Assim, se não existem vestígios, não há como exigir-se a realização de exame pericial.” (STJ, RHC 33167 / AM, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, j. 7/2/2013).

Nesse contexto, o judiciário aplica sanção à conduta ora mensurada; sendo o ato censurável, reprovável, pela sociedade, aplicam-se um misto de interpretações (teleológicas, sistemáticas etc.) para atingir uma finalidade lógica, atendendo à moralidade sociocultural vigente, conforme requeira o caso em específico.

O objetivo desse debate foi trazer luz e mostrar os potenciais perigos aos quais estão expostos os menores dada a evolução das mídias sociais, evolução que pode turvar o pensamento e a visão da realidade.

Por último, a deontologia jurídica, que trata dos princípios e valores sociais que impõe comportamentos voltados para as mudanças e avanços que a sociedade lhe propõe, cuida de posicionar, no atual cenário que vivemos, advogados, juízes promotores, para que, no enfrentamento de condutas abjetas, ajam de acordo com os padrões éticos, afastando-se o máximo possível de suas convicções pessoais, religiosas etc., e verifiquem o alcance da norma vigente a fim de fazê-la corresponder às necessidades reais e atuais da sociedade, aplicando os princípios da dignidade humana, o espírito ético-moral, social, como meios para solucionar os conflitos.

O professor Sílvio de Macedo na obra Filosofia do Direito, de Miguel Reale (2002, p.162) propõe o seguinte pensamento, que serve de fechamento às nossas ponderações: “Ao Jurista, consciente dessa responsabilidade na sua profissão, se lhe pode atribuir o ‘papel’ de agente transformador da sociedade”.

Sobre o autor

José Gomes Bandeira Filho

Advogado. Formado em Direito pela Faculdade de Ciências e Letras de Rondônia (1995). Pós-graduado em Direito Penal e Direito Processual Penal. Conselheiro estadual – Seccional da OAB/RO (2007/2008). Diretor, secretário-geral da OAB/RO (2008/2010). Diretor, presidente da Caixa de Assistência da OAB/RO (2010/2012). Ex-presidente da Associação dos Advogados Criminalista de Rondônia. Colaborador na Fundação da Faculdade Católica de Rondônia.