INTRODUÇÃO
Nos últimos decênios do século XX, a humanidade presencia o avanço tecnológico representado pelos meios de comunicação em internet de alta velocidade, com o conceito de estado-nação e o indivíduo sujeito de direitos internacionais moldados desde a paz de Westfalia, em 1648, modelo que perdurou até o século XX, entre soberania, povo e território modificados diante da fluidez do mercado global representado pelos grandes conglomerados que ditam as regras do mercado financeiro, extremamente conectados na teia mundial da produção, naquilo que Bauman e Bordoni chamam de desmaterialização do capital (Bauman e Bordoni, 2016), este não mais representado nas indústrias, mas sim no espaço de fluxos internacional e sem limites fronteiriços, colocando em cheque direitos humanos das mais variadas órbitas, vez que a unidimensionalidade do lucro aético mantem a lógica do consumo no ser humano como fonte última a ser perseguida e, nisso, direitos do homem em grau de vulnerabilidade potencializada.
Bem certo que, em relação à lógica do consumo global, não é de hoje que o pensamento humano se conecta com preocupações direcionadas à prevalência do consumo nas relações sociais.
Estamos no paradigma do everywhere e da e-democracia, trazido por Pamplona e Freitas (2015), ao se constatar que “a informação está acessível a partir de qualquer lugar e vive-se um cenário no qual não se está atento a tudo isso todo o tempo”.
Neste cenário socioeconômico, o que é novo, em minutos, torna-se uma antiga incerteza, e o conceito de tempo e espaço não mais podem ser aplicados na sociedade contemporânea. Ainda nessa perspectiva, Eric Hobsbawn alerta, ainda no último decênio do século passado, que “o poder do mercado independente tornou mais fácil para a juventude descobrir símbolos materiais ou culturais de identidade” (Hobsbawn, 1995, p. 322).
Mas esse ideal de mundo de consumo fez criar grandes culturas empresariais numa rede supranacional de fluxo de capital, tornando o ser humano incluído no mundo do consumo, vulnerável a riscos cada vez maiores de produção e, dentre os excluídos (infoexcluídos, em termos de era digital), mais ainda vulneráveis na tentativa de suprir necessidades materiais que atendam um padrão interconectado de cultura ocidentalizada.
Segundo Ulrick Beck em La sociedad del riesgo (Beck, 1999, p. 113):
Si la modernización se entende como um processo de innovación que há devenido autónomo, debe aceptarse también que la própria modernidade envejece. La outra cara de este envejecimiento de la modernidade industrial es la aparición de la sociedade del riesgo.
O homem ultramoderno foi precificado, na era em que, segundo Bourdieu, “o preço em dinheiro tem um tipo de objetividade e universalidade brutais, que não deixam muito espaço para apreciação subjetiva” (Bordieu, 2005, p. 34). Vive-se de forma unidimensional e em escala global o etiquetamento do indivíduo enquanto classe, num quadro em que o problema se agrava quando as decisões sobre o rumo da humanidade, seja em âmbito econômico, financeiro, ambiental ou de desenvolvimento, escapam da alçada institucional-democrática, diluindo-se numa rede dominada por grandes conglomerados, em receitas que extrapolam Estados-nação, “elites poderosas, holdings, multinacionais, lobbies e o chamado mercado” (Bauman e Bordoni, 2016, p. 43), determinando destino de milhares.
A hipótese aqui trabalhada é da vulnerabilidade do homem em quadra ultramoderna, do Estado, em crise, detentor da política e sujeito a outros parâmetros de poder, menos imponente que no período de sua formação, no início da idade moderna, delineado hoje por uma realidade de conexão instantânea, na qual opiniões da maioria são moldadas por vezes em rumos imprevisíveis, sendo urgente o debate sobre o cenário de sobrevivência de instituições independentes e contramajoritárias, de uma democracia transnacional cujos movimentos sejam capazes de atuar sobre políticas públicas dos Estados-Nação no direcionamento à efetivação aos direitos humanos, da manutenção da democracia amparada em convivência de opostos, de um mundo não militarizado, onde a concentração de poder continue sendo considerado um mal a ser combatido.
A RELAÇÃO ESTADO-POLÍTICA/MERCADO-PODER: CRISE E DESDEMOCRATIZAÇÃO
Com o fim da guerra dos 30 anos, em 1648, após grandes batalhas de cunhos religiosos e econômicos, envolvendo várias nações, criou-se o Estado no modelo de poder soberano no limite de seu território, na prevalência internacional de princípios da não-intervenção. Um marco para o direito internacional, na medida em que Estados passaram a sujeitos de direitos, nesta esfera.
Após séculos de um pensamento liberal da relação Estado-indivíduo, percebeu-se que essa liberdade meramente formal não foi suficiente para impedir duas guerras mundiais, holocaustos e bombas atômicas. Sim, o Direito em pleno século XX, como prova da hipótese aqui levantada na introdução, não é uma ciência a-histórica e puramente técnica, sendo mesmo capaz de legitimar barbáries.
Eugênio Raul Zaffaroni, em sua obra Doutrina Penal Nazista: a dogmática penal Alemã entre 1943 a 1945 deixou muito clara essa vertente, ao se referir sobre o encapsulamento da dogmática, da separação do direito da realidade histórica, como sendo um perigo pelos efeitos que a ciência do direito tem como orientadora de decisões de um poder do Estado, naquilo que chamou de Direito Penal Desumano (Zaffaroni, 2019, p. 22-25):
O poder punitivo executou genocídios em todos os tempos, mas não todos elaboraram discursos jurídico-penais de legitimação ou, se o fizeram, em geral foram de baixo nível teórico. Pelo contrário, a dogmática penal alemã desses anos é o discurso jurídico-penal de legitimação genocida mais finamente elaborado de todos os tempos, cujo altíssimo nível de racionalização teórica não pode comparar-se com nenhum outro.
Somente na segunda metade do século XX, no pós-guerra, passamos a adotar um modelo de Constitucionalismo Democrático enquanto limitação de poder, espelhado em normas internacionais como limitação da barbárie humana como um todo, com a positivação universalizante do princípio da dignidade da pessoa humana em inúmeros ordenamentos ocidentais, com cláusulas compromissórias que estipulavam um objetivo nas molduras de poder, trazidas com o conceito de mínimo existencial.
Um Constitucionalismo Contemporâneo, assim chamado também de Neoconstitucionalismo, que muito bem explica Streck, em seu Verdade e Consenso (Streck, 2011, p. 37):
Na verdade, o Constitucionalismo Contemporâneo conduz simplesmente a um processo de continuidade com novas conquistas, que passam a integrar a estrutura do Estado Constitucional no período posterior à Segunda Guerra Mundial […] Com efeito, o Constitucionalismo pode ser concebido como um movimento teórico-político em que se busca limitar o exercício do Poder a partir da concepção de mecanismos aptos a gerar e garantir o exercício da cidadania.
Esse novo rearranjo de poder, pós-segunda guerra, novamente pode conviver com violações de direitos humanos em âmbitos internacionais, com ditaduras vivenciadas na América Latina na segunda metade do século XX, por exemplo, o que inclusive atrasou essa onda constitucional ao Brasil, posto que apenas em 1988 tivemos nosso padrão contemporâneo, ao menos normativamente democrático, “em direção a um constitucionalismo compromissório, de feições dirigentes, que possibilitasse, em todos os níveis, a efetivação de um regime democrático em terrae brasilis” (Streck, 2011, p. 36).
Com a modernidade tardia, por alguns chamados de pós-modernidade, passamos a vivenciar intensamente na primeira década do século XXI a liquidez das relações polarizadas, as promessas não cumpridas da democracia social, os refugiados e suas barreiras humanitárias, a percepção dos novos riscos globais (a exemplo dos ambientais), a era da ultramodernidade vivida com o desenvolvimento da internet, que ao mesmo tempo em que agigantou o trânsito de informações, em parte democratizando o acesso, fez do antigo conceito de Estado algo também internacionalizado, com o poder político necessariamente aliado a uma estrutura de capital financeiro, internacionalizado, flutuante, um modelo unidimensional.
A democracia na modernidade tardia passa por esse cenário, devendo-se levar em conta que, a ser encarada entre um motor movido por pensamentos muitas vezes adversariais, não pode jamais retroceder a um nacionalismo exacerbado, uma luta entre opostos, uma batalha onde haja um inimigo, uma metafísica luta entre bem e mal. Afinal, toda radicalidade somada à criação de um inimigo comum sempre concentra poder e, replicando o pensamento do início do artigo, a luta travada pelo direito pode ser considerada uma luta pela limitação de poder, neste caminho, nos ensina Bauman e Magatti (2007, p. 90) , no viés de Estado e fragmentação política, uma brilhante ponte sobre tais conceitos em sua obra italiana:
[…] in fatti, i governi, di sinistra o di destra che siano, raccoglieranno difficilmente il consenso dell eletorato a meno di riuscire ad attirare e trattenere i flussi finanziari di capitale, ormai globali, extraterritoriali e liveramente circolanti.
Em tradução livre:
“(…) na verdade, os governos, sejam eles de esquerda ou de direita, dificilmente terão o consentimento do eleitorado, a menos que consigam atrair e reter os fluxos de capital agora-globais, extraterritoriais e circulantes”.
Conseguintemente, conforme Martins (2013):
Torna-se então evidente que, numa sociedade de valor, a política se encontra numa relação de dependência em relação à economia. Como o desaparecimento dos seus meios financeiros, o Estado reduz-se à gestão, sempre mais repressiva, da pobreza.
Assim, a dependência interconectada entre o mercado e seu capital global faz-se na divisão do poder do mercado e no Estado e sua política, dirigindo caminhos que nem mesmo aquele sabe para onde irão; Bauman e Bordoni (2016, p. 42) chamaram do braço inoperante do Leviatã, reduzido a um corpo mutilado:
Agora, o poder está distante e disperso num plano global e separado da política com a qual estivera até então intimamente ligado. O leviatã de Hobbes privado de seu braço operante é reduzido a um corpo mutilado que chafurda em impotência. Ele se agita, argumenta e proclama, mas nada pode fazer, mesmo quando toma decisões graves, pois a face operacional é de responsabilidade dos outros. Já não pertence mais a ele.
CONCLUSÃO
Neste ponto, a separação entre política e poder representa um risco para a democracia, cujas constituições, enquanto normas fundamentais, possuem caráter predominantemente programáticas, que formalmente garantem aos cidadãos o poder de tomar decisões comuns, mas que, de fato, não são tomadas pela incapacidade diante de um cenário diluído, fluido, de novidades efêmeras e mercantilizadas, em proporções globais e poder unidimensional, enquanto padrão de rearranjo de poder.
Nessa atualização da facticidade dos planos de ação nacionais, seriam importantes efetivações legislativas no sistema internacional dos Direitos Humanos, pairando até agora, porém, no difícil equilíbrio da relação mercado poder e estado.
Necessário, porém, dentro dessa construção histórica, saber que se atua em campus onde os Estados na atualidade representam o mero detentor de rumos de políticas em nível mundial, em poder liquefeito em capital instável e perene transitando nas nuvens; fundamental, assim, repensar os rearranjos de poder e a capacidade do Estado direcionar as liberdades instrumentais dos indivíduos. Que o Direito é histórico e cabe aos seus operadores entender que a luta diária envolve a democracia como um porvir, sem conceito fixo, um gênero pertencente ao contínuo amanhã, podendo sempre retroceder no pêndulo histórico da concentração autocrática.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt; MAGATTI, Mauro. Homo consumens: lo sciame inquieto dei consumatori e la miseria degli esclusi. Trad. M. De Carneri, P. Boccagni. Trento: Edizioni Erickson, 2007.
BAUMAN, Zygmunt; BORDONI, Carlo. Estado de crise. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Trad. Jesús Alborés Rey. Madri: Siglo XXI Editores, 1999.
BOURDIEU, Pierre. O campo econômico. Publicado originalmente na revista Actes de la Recherche em Sciences Sociales, n. 119, p. 48-66, set-1997. Trad. Suzana Cardoso e Cécile Raud-Mattedi. Política & Sociedade, v. 4, n. 6, p. 15-57, abr. 2005. Disponível em: . Acesso em: 19 set. 2017.
FREITAS, Cinthia Obladen de Almendra; TAVARES NETO, José Querino. A tecnologia como campo científico e dominação social sob a ótica de Pierre Bourdieu. In: José Querino Tavares Neto; Cinthia Obladen de Almendra Freitas; Andréa Abrahão Costa (Org.). Métodos de pesquisa aplicados ao direito: um pressuposto epistemológico necessário. Curitiba: Editora CRV, v. 1, p. 8-36. 2017.
HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. Tradução Marcos Santarrita. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
MARTINS, Rui Cunha. A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2013.
PAMPLONA, Danielle Anne e FREITAS, Cinthia Obladen de Almeida. Exercício Democrático: A tecnologia e o surgimento de um novo sujeito. Revista Pensar. Fortaleza, v. 20, n 1, p. 84-107, jan/abr. 2015. Disponível em: http://periodicos.unifor.br/rpen/article/viewFile/2838/pdf. Acesso: 3 nov. 2017.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras. 2010.
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Doutrina penal nazista: a dogmática penal alemã entre 1943 a 1945 [livro eletrônico]. Trad. Rodrigo Murad do Prado. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2019.
Sobre o autor
Fábio Henrique Fernandez de Campos
Professor de graduação e pós-graduação; Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR); Especialista em Direito Criminal pela Universidade da Amazônia (Unama); MBA em Gestão de Planejamento Estratégico no Setor Público pelo IFRO.