Direito e a Aviação Brasileira em tempos de Covid-19

1 Introdução

No primeiro semestre do ano de 2020, a humanidade foi surpreendida pela Covid-19 ou SARS-Cov-2. A Organização Mundial de Saúde decretou pandemia, já que houve a disseminação do vírus em mais de 100 países1. Por esse motivo, vários países, inclusive o Brasil, adotaram medidas de restrição ao contato social, que foram determinadas pela união, estados e municípios.

A relação entre as companhias aéreas e consumidores sempre precisou de muita atenção dos legisladores, agências reguladoras e órgãos de controle. Além disso, o Judiciário tem protagonizado um papel importante nessa relação, balizando os abusos das empresas de modo que exista um equilíbrio na relação a fim de proteger a parte mais fraca e hipossuficiente da relação, o consumidor.

O grande problema de toda essa relação são os de atrasos e cancelamentos de voos e, em meio à pandemia, é preciso saber quais os limites e direitos de ambos, consumidores e empresas prestadoras de serviço, já que corrente majoritária das cortes estaduais e do STJ consideram que cancelamentos e atrasos de voos resultam em danos morais presumidos, ou seja, independente da demonstração de dano efetivo.

Em um cenário de normalidade, a relação entre consumidores e companhias aéreas era regulada pelo Código Civil, Código de defesa do Consumidor e, em especial, pela resolução 400 da ANAC. Entretanto, o vírus causou tamanho caos que para assegurar efetividade no direito dos consumidores e a estabilidade e continuidade da atividade comercial da aviação comercial no Brasil, foi necessário à adoção de medidas excepcionais.

O Governo Federal editou a MP n. 925/2020,na qual estabelece medidas emergenciais para a aviação civil brasileira. Em resumo, essa MP isenta o consumidor de penalidades pelo cancelamento e remarcação de voo e define regras para os pedidos de reembolso. Também, o Ministério da Justiça, Secretária Nacional do Consumidor, Ministério Público Federal e a Associação Brasileira das Empresas Aéreas assinaram um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) a fim de estabelecer regras que equalizam o direito do consumidor, de outro lado flexibiliza as obrigações das companhias aéreas, dando um folego para que as empresas prestadoras de serviço possam respirar enquanto essa pandemia não passa. Nos tópicos a seguir, serão abordados os principais pontos da legislação, resoluções da Anac, Medida Provisória e Termo de ajuste de conduta firmado, para que os consumidores e as prestadoras de serviço tenham certas suas obrigações e direitos, bem como para que os colegas advogados tenham uma fonte onde buscar o direito de seus clientes, seja lá quem ele for.

2 Das medidas excepcionais para o enfrentamento da Covid-19

Medida Provisória 925/20202:

Art. 1º Esta Medida Provisória dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da covid-19.

Art. 2º Nos contratos de concessão de aeroportos firmados pelo Governo federal, as contribuições fixas e as variáveis com vencimento no ano de 2020 poderão ser pagas até o dia 18 de dezembro de 2020.
Art. 3º O prazo para o reembolso do valor relativo à compra de passagens aéreas será de doze meses, observadas as regras do serviço contratado e mantida a assistência material, nos termos da regulamentação vigente.

§ 1º Os consumidores ficarão isentos das penalidades contratuais, por meio da aceitação de crédito para utilização no prazo de doze meses, contado da data do voo contratado.

§ 2º O disposto neste artigo aplica-se aos contratos de transporte aéreo firmados até 31 de dezembro de 2020.

Art. 4º Esta Medida Provisória entra em vigor na da data de sua publicação. Brasília, 18 de março de 2020; 199º da Independência e 132º da República.

Como dito alhures, esta foi a principal medida que permitiu que as companhias aéreas pudessem manter seu fluxo de caixa, e também permitiu que o consumidor tivesse mais liberdade para cancelar suas passagens sem a incidência de multa, desde que deixem o crédito no caixa das companhias aéreas.

3 As partes mais relevantes do TAC da Aviação/Covid-193 para os consumidores

Neste ponto do artigo, peço vênia para transcrever as partes mais importantes do TAC e, em seguida, fazer as considerações sobre a problemática:

Regras de cancelamento e reembolso O passageiro que tiver adquirido bilhete de passagem até a data de assinatura deste TAC e que possuir ticket de passagem para voo nacional ou internacional a ser operado entre 1 março e 2020 e 30 de junho de 2020, poderá sem aplicação de taxas ou de eventuais multas, CANCELAR a sua viagem, mantendo o valor integral do ticket em créditos que será validado por 1 (um) ano a contar da data de voo.

Parágrafo Primeiro: Quando da utilização do crédito, caso o passageiro opte por aquisição de produto e serviço em valor superior a esse crédito, poderão ser cobradas as eventuais diferenças de valores ou tarifas, mas não poderão ser cobradas tarifas de remarcação e multas. Parágrafo Segundo: No caso de solicitação de reembolso por parte do passageiro, aplicar-se-ão as multas e taxas contratuais previstas nas regras tarifárias e o valor residual será reembolsado em até 12 (doze) meses, a contar da data da solicitação de reembolso feita pelo passageiro.

Assistência material em caso de fechamento de fronteiras

Em razão da pandemia e de atos do governo a ela relacionados (que caracterizam força maior e caso fortuito), não será exigido das empresas a assistência material prevista na Seção III da Resolução 400 da ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil, de 3 de junho de 2016, nos casos de passageiros impactados por atrasos ou cancelamentos de voos decorrentes do fechamento de fronteiras que impeçam as companhias aéreas de manterem seus voos para a localidade afetada. Todavia, as companhias aéreas comprometem-se a envidar esforços para auxiliar o Ministério das Relações Exteriores para a localizar e trazer brasileiros localizados no exterior.

Da alteração do contrato e transporte por parte do trabalhador

As alterações realizadas de forma programada pelo transportador, em especial quanto ao horário e itinerário originalmente contratados, deverão ser informadas aos passageiros com antecedência mínima de 24 (vinte e quatro) horas, devendo a empresa aérea envidar seus melhores esforços para garantir alternativa de voo a fim de que o consumidor chegue ao seu destino no mesmo dia programado (ainda que com substancial mudança de horário).

Do descumprimento

Em caso de descumprimento do presente TAC, ficam as Companhias Aéreas obrigada ao pagamento de multa diária no valor de R$ 5.000,00 (Cinco mil reais), que será revertida em favor do Fundo Federal de Direitos Difusos, instituído pelas Leis 9008/95 e Lei n. 7.347/85. Na prática, o que se tem visto é que as companhias aéreas têm cancelado e remarcado de forma unilateral muitos voos, utilizando como justificativa a pandemia da Covid-19. Em parte, pode-se atribuir a responsabilidade ao vírus, entretanto, as empresas aéreas têm se utilizado da MP e do TAC para continuar comercializando passagens às quais já tem consciência de que não cumprirão com o contratado.

Mas, o ponto que se destaca aqui é o item 5 do TAC, que trata da “alteração do contrato e transporte por parte do trabalhador”. Este item estabelece que a companhia aérea deve: “…envidar seus melhores esforços para garantir alternativa de voo a fim de que o consumidor chegue ao seu destino no mesmo dia programado (ainda que com substancial mudança de horário)”.

Entretanto, a realidade não é essa! Ao que tudo indica, as companhias aéreas vendem as passagens, cancelam ou remarcam os voos desrespeitando o estabelecido no TAC e não envidam nenhum esforço para acomodar o passageiro em voo que supra sua necessidade de transporte e de chegar ao destino para o seu compromisso. O passageiro que tiver adquirido bilhete de passagem até a data de assinatura deste TAC e que possuir ticket de passagem para voo nacional ou internacional a ser operado entre 1 março e 2020 e 30 de junho de 2020, poderá sem aplicação de taxas ou de eventuais multas, CANCELAR a sua viagem, mantendo o valor integral do ticket em créditos que será validado por 1 (um) ano a contar da data de voo.

Além disso, em alguns pontos, o TAC pode ser considerado abusivo ao direito do consumidor, inclusive, talvez no futuro possa até vir a ser questionado na via jurisdicional, conforme veremos a seguir.

Lei n. 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor4

Quando a companhia faz uma oferta que sabe que não pode cumprir, ela incorre em crime contra o consumidor, isso é o que estabelece o CDC:

Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique como tal. Parágrafo único. O fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem.
Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.
§ 1º É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.
§ 2º É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.
§ 3º Para os efeitos deste código, a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço.
Art. 38. O ônus da prova da veracidade e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as patrocina.

Dos meios alternativos de resolução dos conflitos: plataforma Consumidor.gov.br e Procon

Outro ponto relevante é que o TAC orienta que o consumidor acesse à plataforma Consumidor.gov.br para dirimir qualquer divergência entre consumidor e a empresa prestadora de serviço.

Na plataforma, será constituído um processo administrativo e este servirá de prova para que o consumidor mais tarde busque seu direito. Vale ressaltar que a plataforma tem tido eficiência para que o consumidor formalize suas reclamações, entretanto, na prática, já foi constatado que o consumidor não é atendido satisfatoriamente em sua demanda. Para todas as situações em que a plataforma já demonstrou não possuir a eficiência esperada, a orientação é para que o consumidor procure o Procon, pois apesar das flexibilizações, o TAC estabelece multa diária de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), que será destinada ao Fundo Nacional de Direitos Difusos, mas, para que isso aconteça, o consumidor precisa denunciar os abusos das companhias aéreas.

O Código Civil e Resolução 400/2016 ANAC5 Infelizmente, são corriqueiros os casos em que a viagem é interrompida em uma conexão ou no embarque de volta por conta de um cancelamento, atraso ou mesmo overbooking, para essas situações o principal diploma legal a ser lembrado é o Código Cível, vejamos:

Art. 741. Interrompendo-se a viagem por qualquer motivo alheio à vontade do transportador, ainda que em consequência de evento imprevisível, fica ele obrigado a concluir o transporte contratado em outro veículo da mesma categoria, ou, com a anuência do passageiro, por modalidade diferente, à sua custa, correndo também por sua conta as despesas de estada e alimentação do usuário, durante a espera de novo transporte.

Já a resolução 400/2016 da ANAC, no capítulo que trata do atraso, cancelamento, interrupção do serviço e preterição, estabelece várias regras para amenizar os abusos cometidos contra o consumidor nos casos de alteração, cancelamento, preterição, extravio de bagagem, inclusive, determinando em alguns casos a compensação financeira imediata pela empresa aérea:
Art. 20. O transportador deverá informar imediatamente ao passageiro pelos meios de comunicação disponíveis:
I – que o voo irá atrasar em relação ao horário originalmente contratado, indicando a nova previsão do horário de partida; e
II – sobre o cancelamento do voo ou interrupção do serviço.
§ 1º O transportador deverá manter o passageiro informado, no máximo, a cada 30 (trinta) minutos quanto à previsão do novo horário de partida do voo nos casos de atraso.
§ 2º A informação sobre o motivo do atraso, do cancelamento, da interrupção do serviço e da preterição deverá ser prestada por escrito pelo transportador, sempre que solicitada pelo passageiro
Art. 21. O transportador deverá oferecer as alternativas de reacomodação, reembolso e execução do serviço por outra modalidade de transporte, devendo a escolha ser do passageiro, nos seguintes casos:
I – atraso de voo por mais de quatro horas em relação ao horário originalmente contratado;
II – cancelamento de voo ou interrupção do serviço;
III – preterição de passageiro; e
IV – perda de voo subsequente pelo passageiro, nos voos com conexão, inclusive nos casos de troca de aeroportos, quando a causa da perda for do transportador.
Parágrafo único. As alternativas previstas no caput deste artigo deverão ser imediatamente oferecidas aos passageiros quando o transportador dispuser antecipadamente da informação de que o voo atrasará mais de 4 (quatro) horas em relação ao horário originalmente contratado.
Art. 22. A preterição será configurada quando o transportador deixar de transportar passageiro que se apresentou para embarque no voo originalmente contratado, ressalvados os casos previstos na Resolução n. 280, de 11 de julho de 2013.
Art. 23. Sempre que o número de passageiros para o voo exceder a disponibilidade de assentos na aeronave, o transportador deverá procurar por voluntários para serem reacomodados em outro voo mediante compensação negociada entre o passageiro voluntário e o transportador.
§ 1º A reacomodação dos passageiros voluntários em outro voo mediante a aceitação de compensação não configurará preterição
§ 2º O transportador poderá condicionar o pagamento das compensações à assinatura de termo de aceitação específico.
Art. 24. No caso de preterição, o transportador deverá, sem prejuízo do previsto no
art. 21 desta Resolução, efetuar, imediatamente, o pagamento de compensação financeira ao passageiro, podendo ser por transferência bancária, voucher ou em espécie, no valor de:
I – 250 (duzentos e cinquenta) DES6, no caso de voo doméstico; e
II – 500 (quinhentos) DES, no caso de voo internacional.
Art. 25. Os casos de atraso, cancelamento de voo e interrupção do serviço previstos nesta Seção não se confundem com a alteração contratual programada realizada pelo transportador e representam situações contingenciais que ocorrem na data do voo originalmente contratado.
Da assistência material
Art. 26. A assistência material ao passageiro deve ser oferecida nos seguintes casos:
I – atraso do voo;
II – cancelamento do voo;
III – interrupção de serviço; ou
IV – preterição de passageiro.
Art. 27. A assistência material consiste em satisfazer as necessidades do passageiro e deverá ser oferecida gratuitamente pelo transportador, conforme o tempo de espera, ainda que os passageiros estejam a bordo da aeronave com portas abertas, nos seguintes termos:
I – superior a 1 (uma) hora: facilidades de comunicação;
II – superior a 2 (duas) horas: alimentação, de acordo com o horário, por meio do fornecimento de refeição ou de voucher individual; e
III – superior a 4 (quatro) horas: serviço de hospedagem, em caso de pernoite, e traslado de ida e volta.
§ 1º O transportador poderá deixar de oferecer serviço de hospedagem para o passageiro que residir na localidade do aeroporto de origem, garantido o traslado de ida e volta.
§ 2º No caso de Passageiro com Necessidade de Assistência Especial – PNAE e de seus acompanhantes, nos termos da Resolução n. 280, de 2013, a assistência prevista no inciso III do caput deste artigo deverá ser fornecida independentemente da exigência de pernoite, salvo se puder ser substituída por acomodação em local que atenda suas necessidades e com concordância do passageiro ou acompanhante.
§ 3º O transportador poderá deixar de oferecer assistência material quando o passageiro optar pela reacomodação em voo próprio do transportador a ser realizado em data e horário de conveniência do passageiro ou pelo reembolso integral da passagem aérea.

4 Considerações finais

Apesar de parecerem corriqueiros e comuns, os cancelamentos de voos causam de fato inúmeros transtornos na vida das pessoas e das empresas. Muitos compromissos pessoais e profissionais são perdidos por cancelamentos totalmente previsíveis que poderiam ser evitados, e com isso o transporte de coisas e pessoas é deixado para trás. A pandemia causada pela Covid-19 agravou toda essa situação, todos têm sofrido. É importante que mesmo nesses tempos caóticos não se deixe de buscar a justiça!

Notas

1 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato 2019-2022/2020/Mpv/mpv925.htm
2 Disponível em: https://www.novo.justica.gov.br/news/consumidores-poderao-remarcar-voos-sem-custo-adicional-e-taxas/tac-de-20-marco-2020-pdf-pdf.pdf
3 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm
4 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm
5 Disponível em: https://www.anac.gov.br/assuntos/legislacao/legislacao-1/resolucoes/resolucoes-2016/resolucao-no-400-13 -12-2016/@@display-file/arquivo_norma/RA2016-0400%20-%20Retificada.pdf
6 DES = Direito Especial de Saque é uma moeda internacional que tem cotação variável de acordo com o câmbio do dia.
Você pode consultar a cotação no site do Banco Central (https://www.bcb.gov.br/), atualmente ela flutua na casa de R$ 4,00 (Quatro reais), também é possível fazer a cotação nesse site: https://cuex.com/pt/xdr-brl

Felipe Gurjão Silveira

Pós-graduado em Processo Civil pelo Damásio, MBA em Contratos e Licitações pela Policitas. Pós-graduando em Direito Empresarial. Diretor de relações institucionais do Instituto Rondoniense de Direito Administrativo.