A Inconstitucionalidade da legítima defesa da honra nos casos de feminicídio

1. Introdução

Atualmente as leis e políticas públicas não são suficientes para impedir que vidas de mulheres sejam brutalmente tiradas. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2018, p. 44) no Brasil, de 2006 a 2016, a taxa de homicídios contra mulheres cresceu em 6,4%, aumentando de 4.030, em 2006, para 4.645 mulheres assassinadas em 2016.

De acordo com Gomes (2018), o feminicídio é a morte violenta de uma mulher pela sua condição de gênero – esta é sua definição mais abrangente. Discutir sobre as mortes de mulheres é tarefa de ordem teórico-prática bastante complexa, na medida em que são tantas as singularidades frente à letalidade da violência de gênero que o terreno de análise, tornando-se instável, mas imprescindivelmente e necessário se torna.

Assim, objetiva este artigo analisar, através de pesquisa documental e bibliográfica, os posicionamentos contrapostos sobre a aplicabilidade da Lei do Feminicídio, à luz de aspectos criminológicos da inconstitucionalidade da legítima defesa da honra nos casos de feminicídio, sobre a tese do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli, do dia 26 de fevereiro de 2021, no sentido de se posicionar e proteger as mulheres vítimas dessa problemática.

2. Feminicídio

Os movimentos de mulheres e feministas foram os principais responsáveis por denunciar a letalidade da violência praticada contra as mulheres, expressa e nomeada nos feminicídios. De acordo com Gomes (2018), o debate que assim nomeava o fenômeno começou nos anos 1990, nos Estados Unidos, e foi apropriado por mulheres mexicanas para denunciar a existência de feminicídios em Ciudad Juárez, cidade fronteiriça ao norte do país. Posteriormente, o diálogo teórico e as denúncias alcançaram vários países da América Latina.

Nesse sentido, e considerando as mudanças trazidas pela Constituição de 1988, o Direito Penal vem sendo cada vez mais utilizado para sancionar os referidos atos violentos através de dispositivos inseridos no Código Penal, concomitantemente com a aplicação de leis especiais que tratam do tema, como a conhecida Lei Maria da Penha, bem como a polêmica Lei do Feminicídio, sancionada em 2015, juntamente com a decisão de Toffoli (TSF, 2021) sobre a justificativa do feminicídio em defesa da honra (Souza, 2017).
Ações políticas e jurídicas que envolvem a análise de dispositivos da Lei Maria da Penha, Ação Direta de Constitucionalidade (ADC 19) e Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4424) − no Supremo Tribunal Federal (STF). Em relação à parte jurídica, pela procedência da ADC 19, a fim de declarar a constitucionalidade dos artigos 1º, 33º e 41º da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha (Cruz; Sardenberg; Tavares, 2016).

A visibilidade esperada na identificação do feminicídio não serviu apenas para trazer à tona o que estava oculto, mas sim politizar algo de antemão naturalizado, ou que não foi observado e reconhecido em seu contexto social e cultural (Gomes, 2018).

3. Inconstitucionalidade da legítima defesa da honra para justificar os casos de feminicídio: Tese de Toffoli, 26/2/2021

Ao nos referirmos ao feminicídio, estamos tratando do assassinato de uma mulher, conforme destacou Gomes (2018). Além da desproporcionalidade entre o ato de matar e a condição da vítima desse ato, o que chama atenção nos feminicídios é o seu contexto de produção, ou seja, as circunstâncias nas quais se produzem os crimes.

A referida Lei Maria da Penha (Lei n. 13.104/2015) incluiu como qualificadora do crime de homicídio a figura do feminicídio, previsto no inciso VI do Art. 121 do Código Penal como o homicídio praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino; mais adiante, nos incisos I e II do § 2º-A do Código Penal, encarregou-se em delimitar o que se consideram razões de condição de sexo feminino para efeito da citada Lei, quais sejam violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à condição de mulher (Brasil, 2015).

Preliminarmente, o autor sustenta o cabimento da arguição de descumprimento fundamental, pois estaria configurada uma controvérsia constitucional relevante, consubstanciada em decisões do Tribunal de Justiça que ora validam ora anulam veredictos do Tribunal do Júri em que se absolvem réus processados pela prática de feminicídio com fundamento na tese da legítima defesa da honra. Aponta, também, divergências de entendimento sobre o tema entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça (ADPF 779 MC / DF, 2021). Assim, conforme o ministro Toffoli, “a chamada legítima defesa da honra não encontra qualquer amparo ou ressonância no ordenamento jurídico” aditando que não se pode confundir “legítima defesa da honra” com “legítima defesa”, pois somente a segunda constitui causa de excludente de ilicitude (ADPF 779 MC/DF, 2021).

O ministro afirmou em sua tese que para evitar que a autoridade judiciária absolva o agente que agiu movido por ciúme ou outras paixões e emoções, foi inserida no atual Código Penal a regra do artigo 28, no sentido de que a emoção ou a paixão não excluem a imputabilidade penal. “Portanto, aquele que pratica feminicídio ou usa de violência, com a justificativa de reprimir um adultério, não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma desproporcional, covarde e criminosa”; assim afirmou a inconstitucionalidade. Em sua decisão, ele também afirma que o argumento da prática de um crime em razão da legítima defesa da honra constituiu, na realidade, recurso argumentativo/retórico “odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil” (ADPF 779 MC/DF, 2021).

De acordo com os autores Messias, Carmo e Almeida (2020), ao contrário do que muitos especialistas jurídicos pensam, o feminicídio não constitui algo inédito nas legislações, haja vista que muito antes de passar a vigorar no Brasil, tal crime já existia em legislações de outros países da América Latina, tais como Costa Rica, que o inseriu em 2007, Guatemala, no ano seguinte, Chile, em 2010, Peru, em 2011, e El Salvador, México e Nicarágua em 2012. De 2010 a 2015, o número de países latino-americanos que definiram o feminicídio em seus códigos legais aumentou de quatro para dezesseis.

Diante do exposto da tese do Ministro Dias Toffoli, Lei Maria da Penha e a Constituição vigente, há controvérsias no entendimento da interpretação quanto ao veredicto da absolvição do acusado em defesa da honra quando justificado feminicídio por traição, adultério ou rejeição sexual.

Assim, Toffoli em sua tese defendeu a inconstitucionalidade da absolvição do acusado quando especifica que a presente arguição pretende colocar em discussão o conteúdo jurídico da legítima defesa de forma a excluir de seu âmbito a proteção à honra do acusado. Requer a concessão de medida cautelar e, ao fim, a procedência da presente ADPF para que seja atribuída razões de celeridade processual, intimem-se as partes, o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República para que se manifestem, se o desejarem, antes do julgamento do referendo da presente cautelar, possibilitando ainda a apresentação de sustentação oral até às 12h do dia 4/3/21 (ADPF 779 MC/DF, 2021).

Considerações finais

Define-se o conceito cenário de feminicídio como: os contextos socioeconômicos, políticos e culturais nos que se produzem ou propiciam relações de poder entre homens e mulheres particularmente desiguais e que geram dinâmicas de controle, violência contra as mulheres e feminicídios que adotam ou incluem características próprias justificando o ato bárbaro como em defesa da honra.

Atualmente, as mulheres alcançaram uma enorme gama de direitos como a Lei Maria da Penha (Lei n. 13.104) sancionada em março de 2015. Sua abrangência, hipóteses de aplicação e sua natureza jurídica, no entanto, permite que haja ainda uma grande diferença entre homens e mulheres, diferenças essas que fulminam de morte o direito fundamental à igualdade material, qual seja a diferença relacionada à compleição física, que no mais das vezes coloca as mulheres em situação de vulnerabilidade diante de seus algozes.

Diante do exposto, o Ministro Dias Toffoli concluiu que o recurso à tese da legítima defesa da honra é prática que não se sustenta à luz da Constituição de 1988, por ofensiva à dignidade da pessoa humana, à vedação de discriminação e aos direitos à igualdade e à vida, não devendo ser veiculada no curso do processo penal nas fases pré-processual e processual, sob pena de nulidade do respectivo ato postulatório e do julgamento, inclusive quando praticado no tribunal do júri.

Referências

ADPF 779 MC / DF. Liminar impede uso da tese de legítima defesa da honra em crimes de feminicídio. A decisão do ministro Dias Toffoli, que entende que a tese é inconstitucional, será submetida a referendo do Plenário. ADPF 779 MC / DF. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 779 Distrito Federal. Disponível em: www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF779.pdf. Acesso em: 4 mar. 2021.

BRASIL. Lei n. 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 -Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm. Acesso em: 5 mar. 2021.

CRUZ, R.A. Constitucionalidade da Lei Maria da Penha. In: SARDENBERG, C.M.B., and TAVARES, M.S. comps. Violência de gênero contra mulheres: suas diferentes faces e estratégias de enfrentamento e monitoramento [online]. Salvador: EDUFBA, 2016. p. 93-107. Bahianas collection, vol. 19. Disponível em: http://books.scielo.org/id/q7h4k/pdf/sardenberg-9788523220167-05.pdf. Acesso em: 5 mar. 2021.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Atlas da Violência. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2018. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_nlinks&pid=S0104-026X202000010020800021&lng=en. Acesso em: 6 mar. 2021.

GOMES, Izabel Solyszko. Feminicídios: um longo debate. Revista Estudos Feministas. Revista Estudos Feministas, vol. 26, n. 2. Florianópolis. 2018. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2018000200201. Acesso em: 4 mar. 2021.

MESSIAS, Ewerton Ricardo; CARMO, Valter Moura do; ALMEIDA, Victória Martins de. Feminicídio: sob a perspectiva da dignidade da pessoa humana. Revista Estudos Feministas, vol. 28 n.1 Florianópolis. 2020. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2020000100208.
Acesso em: 6 mar. 2021.

SOUZA, Marina Jonsson. Lei do feminicídio: Aplicabilidade legal e violência contra mulher. Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 9, n. 16, p. 295-342, jan./jun. 2017. Disponível em: https://revistajusticaesistemacriminal.fae.edu/direito/article/view/107. Acesso em: 4 mar. 2021.

Sobre a autora

Maiara Lima Ximenes Trench

Graduada pela Faculdade de Rondônia (FARO). Especialista em Prática em Direito Previdenciário pela Inesp. Especialista em Direito Penal e Processual Penal com capacitação para o ensino no magistério superior pelo Damásio de Jesus. Membro da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da OAB/RO

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