A vinculação dos precedentes judiciais no CPC/2015 e o impacto na advocacia

A existência de um microssistema de precedentes vinculantes é uma realidade imposta pelo CPC/2015, com equívocos e acertos, com impactos positivos e negativos, mas sobretudo por impor ao direito brasileiro – de modo bom ou ruim – uma nova cultura de estudo de precedente, uma vez que não existe a ênfase nessa aplicabilidade e estudo.

Para falarmos sobre os precedentes é importante a definição deste como sendo a “a decisão judicial tomada à luz de um caso em concreto, cujo elemento normativo pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos.” 1

De certo modo, toda decisão judicial, por si só, é um precedente judicial, com maior ou menor relevância, influência, vinculação e persuasão; mas, toda decisão judicial serve como base para um julgamento posterior sobre a mesma conjuntura fático-jurídica.

O precedente nasce da atividade jurisdicional, da aplicação do direito ao caso concreto, diferente da lei, que tem origem de um processo legislativo de regulamentação sobre determinada matéria. A interpretação realizada entre os fatos e o direito positivo, diante da subsunção necessária para a resolução de um caso em concreto, são os elementos que formam o precedente, com a decisão concreta e a sua possibilidade de utilização em casos posteriores, dada a sua relevância.

Se a decisão forma coisa julgada para o caso em concreto e aquelas partes, a sua fundamentação – e sua ratio decidendi ou razão de decidir – forma norma abstrata para aqueles fatos apresentados. Se futuramente outro processo detiver uma conjuntura fática análoga àquela da decisão anterior, o teor daquela norma anteriormente criada deve ser considerada e equiparada para fins da decisão desse novo caso.

A interpretação dos fatos e sua relação com o direito existente resulta numa norma jurídica criada no julgamento, não limitada às partes, por não constar da decisão, da parte dispositiva, contudo, essa mesma norma perfaz uma linha de fundamentação para construir o pensamento jurídico que embasa o resultado final.

Essa é a utilização do precedente judicial em qualquer sistema. Não há motivos para que se julgue casos faticamente análogos de modo diverso.

Mas, há diferença entre precedente e jurisprudência? Evidentemente que sim. Importante salientar, no entanto, que a jurisprudência tem como conceito: “uma sucessão de acórdãos consonantes, sobre um mesmo tema, prolatados em modo reiterado e constante, por órgão jurisdicional colegiado, num mesmo foro ou Justiça.” 2

A jurisprudência é um conglomerado de decisões judiciais pelos Tribunais sobre o mesmo tema. Não há um caráter lógico e pormenorizado sobre a sua criação; simplesmente, de forma cotidiana, ao se deparar com o mesmo tema (ainda que com nuances diversas) aquele Tribunal enfrenta a temática da matéria no caso concreto e aplica o seu entendimento.

Não há uma construção lógica, mas uma visão paulatina, cotidiana sobre a questão. E, dessa maneira, não há uma vinculação automática, mas uma orientação persuasiva da jurisprudência, um convencimento pelo seu argumento e relação com os casos que ainda serão julgados.

Diferentemente, o precedente judicial nasce de uma decisão somente, com a força de determinar uma vinculatividade para aquela órgão ou para todo o sistema. A partir daquele momento, há uma vinculação daquela decisão, seja para aquele juízo, seja pela autoridade de quem proferiu a decisão.

Dessa maneira, uma vez julgado o caso paradigmático e servindo como base precedente a outros casos, o juízo futuro 3, ao se deparar com a mesma situação, deve julgar novamente aquela situação sem atrelar-se com a decisão anterior paradigmática ou simplesmente utilizar-se de um julgamento preconcebido como precedente judicial para aquela situação fático-jurídica? Essa vinculação da decisão futura com o precedente criado perfaz a teoria do stare decisis. 4

Se as condições sociais, políticas, econômicas e jurídicas continuam de igual maneira àquela época em que o precedente se formou, não existem motivos para ter um julgamento diferente.

Essa é a condição base do stare decisis: a manutenção da mesma linha decisória enquanto a sociedade tiver os mesmos parâmetros de alicerce. Manter o rumo decisório é manter a estabilidade jurídica. A atividade jurisdicional não é um campo para emoções, para jogos de azar jurisdicional em que uma mesma matéria se ganha ou se perde, mas, de modo inverso, deve ser uma área para pensamentos e decisões estabelecidas dentro de um razoável padrão e um campo de certezas.

Não se intenta uma ação para uma discricionariedade do juízo ou qualquer outra liberdade judicante. Se já existe um caminho jurisdicional percorrido anteriormente sobre a matéria e fatos com similitude daquela nova demanda, deve o Estado, representado pelo juízo, tomar a mesma decisão, respeitando seu próprio precedente, seja inferior ou superior e, principalmente, concedendo confiabilidade no próprio julgamento, bem como no sistema judicial.

Diante disso, o CPC/2015 criou um microssistema de formação de precedentes vinculantes diante do art. 926 e 927 e, ainda, com os diversos institutos pertinentes para a formação de decisões paradigmáticas, tais como: (i) recursos excepcionais repetitivos; (ii) incidente de resolução de demandas repetitivas; (iii) incidente de assunção de competência; (iv) recurso extraordinário em sistema de repercussão geral; (v) as decisões do pleno daquele tribunal.

Com estes institutos, há uma formalidade vinculante dos precedentes judiciais, com a necessidade de uma aplicação destes da maneira ordenada, diante da relação fático-jurídica correta. Ou seja, se um caso análogo já detiver uma solução jurídica há a necessidade de julgamento diante destes parâmetros do ordenamento jurídico.

Essa nova concepção impõe uma nova realidade para o mundo jurídico, tanto para as partes quanto para o Judiciário.

Portanto, para uma validade deste microssistema, para uma viabilidade de todos os institutos e uma real adequação ao cotidiano faz-se necessário todo um esforço, de todos os lados, desde o estudo sistematizado de uma teoria dos precedentes, culminando num melhor entendimento de cada instituto, numa doutrina com a função de preencher as eventuais lacunas; um esforço do judiciário de entender cada ponto do microssistema, aplicá-los de maneira devida, sem atropelo, tampouco somente para aplacar a alta litigiosidade; pelas partes, há a necessidade de uma visão de um ônus argumentativo sobre o precedente, almejando o devido enquadramento nas situações processuais e materiais análogas, dentre outras adaptações necessárias para que essa tentativa legislativa, apesar de passível de críticas, torne-se uma realidade mais justa e não que acelere as demandas a qualquer custo.

Desse modo, com novas funções e óticas, os Tribunais devem julgar imbuindo-se não só de julgar os casos que são de sua competência, mas, também, de entender todo o cuidado existente nessa formação judicante do precedente, uma vez que as decisões, apesar da individualidade subjetiva, terão cunho mais objetivo e coletivo, com um impacto em outros processos existentes ou futuros.

É uma nova realidade, o que enseja novos desafios para os Tribunais e os operadores do direito, com as devidas adaptações para que o microssistema se torne um procedimento de garantias e não um mero mecanismo de reprodução de decisão para julgamentos em massa, tolhendo direitos processuais.

Se, para o Judiciário a vinculação impõe a necessidade de que se entenda o ordenamento jurídico de modo além da lei, mas com a norma jurídica incluindo os precedentes judiciais vinculantes e a necessidade de que todos os juízos decidam diante destes precedentes, para as partes, estas têm a necessidade de que não utilizem mais de modo automático a jurisprudência, mas que seja realizada a comparação do caso em questão com o precedente judicial vinculante.

O precedente judicial detém uma inércia argumentativa em seu conteúdo , com a sua validade irradiando vigência e eficácia, com a necessidade de que cada juízo considere, enfrente e fundamente a utilização, ou não, de um precedente judicial. É isso que se espera do Judiciário, atuando de maneira estável, íntegra e coerente.

No entanto, cabe à advocacia adaptar-se igualmente a essa realidade.

Como precedente judicial não é jurisprudência, não há a necessidade de proliferação de decisões numa petição para que seja invocado um precedente judicial. Se o precedente judicial é formado a partir de uma decisão base, na petição – qualquer delas – que se for suscitar a existência de um precedente judicial vinculante sobre aquela matéria fático-jurídica, há a necessidade de que se enfrente aquela decisão paradigmática com um verdadeiro cotejo analítico, com a demonstração de convergência da situação fática do precedente existente com a situação fática daquele processo a ser julgado.

Posteriormente, deve-se utilizar encaminhar as bases jurídicas com a convergência entre o resultado do precedente judicial vinculante e aquele que se aguarda como a base da decisão judicial daquele caso em concreto. Essa é a utilização correta do precedente judicial na petição. Se o Judiciário deve aplicar o precedente judicial de modo correto, como preconiza em diversos dispositivos, mas principalmente no art. 489, § 1º, V e VI do CPC, as petições das partes devem ser construídas de igual maneira com a suscitação de modo eficiente dos precedentes judiciais sobre aquela matéria.

Se os juízos detêm o dever de utilizar o precedente judicial, a advocacia deve adaptar-se e atualizar-se sobre cada matéria, no direito processual ou material, para a devida utilização e suscitação do precedente judicial que vincula e resolve aquela situação fático-jurídica. O dever de fundamentação é dialógico entre a advocacia, as partes e o Judiciário, com a devida suscitação dos precedentes judiciais vinculantes.

Não se deve somente utilizar ementas de jurisprudência, tampouco discorrer sobre diversos julgados, deve-se focar no precedente judicial vinculante que detiver a força de definir aquela matéria e delineá-lo como a solução jurídica para aquela situação a ser julgada, sem um excesso de citações desnecessárias, mas com a construção melhor e mais bem definida do que se suscita, com a ênfase ao que se tem de vinculação.

Desse modo, o dever de aplicabilidade do precedente judicial não é somente do Judiciário, mas das partes e seus representantes também, seja para construir a argumentação da aplicabilidade, seja para refutar essa aplicabilidade caso não seja a solução adequada por distinção fática.

Não se pode simplesmente deixar a cargo do Judiciário o ônus de aplicação do precedente judicial vinculante, com a necessária divisão de tarefas da advocacia, desde o estudo dos precedentes até a melhor construção da utilização adequada, sem ementismo ou excesso de citações de jurisprudência, mas com a construção argumentativa da necessária decisão com a vinculação ao precedente judicial preexistente.

O sistema necessita do avanço e este deve vir de modo dialógico.

Notas

  1. DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Teoria da Prova, direito probatório, decisão, precedentes, coisa julgada e tutela provisória. 10a ed. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 441.
  2. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. São Paulo: Ed. RT, 1999. p. 33.
  3. “A perspectiva tradicional sobre os precedentes, dentro e fora do direito, tem, desta maneira, focado no uso dos precedentes do passado nas decisões atuais. Entretanto, de uma maneira igualmente se não mais importante, uma argumentação por precedente se projeta também para o futuro, pedindo-nos para olhar as decisões de hoje como um precedente pra os julgadores do amanhã. Hoje não é apenas o futuro do passado; é, do mesmo modo, o ontem do amanhã. Um sistema de precedentes, assim, envolve a responsabilidade especial que acompanha o poder de comprometer o futuro antes de chegarmos lá.” SCHAUER, Frederick. Precedente. Precedentes. Orgs: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; MACEDO, Lucas Buril de; ATAIDE JR, Jaldemiro Rodrigues de. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 50/51.
  4. “De regra, o termo stare decisis significa tanto a vinculação, por meio do precedente, em ordem vertical (ou seja, como representação da necessidade de uma Corte inferior respeitar decisão pretérita de Corte superior), como horizontal (a Corte respeitar decisão anterior proferida no seu interior, ainda que a constituição dos juízes seja alterada). Esta é a posição adotada, entre outros, por Neil Duxbury e Melvin Aron Eisenberg. Em outra senda, há aqueles que optam por distinguir o termo stare decisis de precedente, como Frederik Schauer, para quem, “tecnicamente, a obrigação de uma corte de seguir decisões prévias da mesma corte é dita como sendo stare decisis (…), e o termo mais abrangente precedente é usado para se referir tanto à stare decisis, quanto à obrigação de uma corte inferior de seguir decisões de uma superior.” MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Ed. RT, 2010. p. 27.
  5. O primeiro passo para uma nova cultura de utilização do precedente a ser formado é entender os equívocos, com a sapiência e autocrítica para depois a melhoria. Bahia e Nunes apontando dois equívocos: a mera repetição de ementas como utilização equivocada do precedente e a ignorância do precedente na hora de prolação da decisão. Ambos são nocivos ao sistema, cada qual a sua maneira e gravidade: “Infelizmente, até ao menos a entrada em vigor do CPC-2105, duas posturas são costumeiras no Brasil ao se usar os julgados dos tribunais como fundamento para as decisões: (a) a de se repetir mecanicamente ementas e enunciados de súmulas (descontextualizados dos fundamentos determinantes e dos fatos que os formaram), como bases primordiais para as decisões, seguindo uma racionalidade própria da aplicação das leis, encarando esses trechos dos julgados como “comandos” gerais e abstratos – é dizer, repristinando uma escola da exegese apenas que substituída a lei pelos (pseudo) “precedentes” ou (b) de se julgar desprezando as decisões anteriormente proferidas, como se fosse possível analisar novos casos a partir de um marco zero interpretativo; num e noutro caso o juiz discricionariamente despreza os julgados, a doutrina e o próprio caso que está julgando.” BAHIA, Alexandre Melo Franco; NUNES, Dierle. Precedentes no CPC-2015: por uma compreensão constitucionalmente adequada do seu uso no Brasil. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro. nº 57, jul./set. 2015. p. 20/21
  6. Ataíde Jr. conceitua e propõe uma inércia argumentativa, a qual seria a diminuição da necessidade de enfrentar a fundamentação interna do precedente quando este for utilizado, o que nada retira o dever de fundamentar o enquadramento, ou seja, não há necessidade do juízo delinear novamente todas as fundamentações do precedente, somente motivar a correlação. No entanto, se há inércia argumentativa para usar o precedente, há um ônus ainda maior quando for tergiversar o precedente. Concordamos integralmente com Ataíde Jr., porém, que não seja essa inércia interpretada como autorizante de replicar o precedente sem a devida fundamentação da correlação: “Ou seja, a inércia argumentativa intervém em favor do estado de coisas existente, que só deve ser alterado, se houver justificadas razões para a mudança, se houver prova da oportunidade de mudar de conduta diante de uma situação que se repete. No direito, as razões a favor da mudança funcionam de forma bastante semelhante à força resultante que pode pôr em movimento um corpo em repouso, ou a alterar a velocidade ou direção de um corpo em movimento.” ATAIDE JR, Jaldemiro Rodrigues de. A fundamentação adequada diante do sistema de precedentes instituído pelo NCPC. Precedentes. Orgs: DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; MACEDO, Lucas Buril de; ATAIDE JR, Jaldemiro Rodrigues de. Salvador: JusPodvim, 2015. p. 697.
  7. A ementa, nas palavras de Lopes Filho, é um “extrato do raciocínio utilizado em termos gerais com conclusão sumária do provimento ou não do recurso.” LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os precedentes judiciais no constitucionalismo brasileiro contemporâneo. 1a. Ed. Salvador: Jus Podivm. 2014. p. 98.
  8. Magalhães e Silva foram felizes ao identificar essa prática, nomeá-la e estudá-la. Para uma teoria de precedentes ser possível, seja qual for a maneira com que o legislador entendeu como pertinente para colocá-lo em prática, a devida utilização, com o ônus argumentativo de que o suscite e de quem julga é essencial. Não se pode instituir o equívoco da mera reprodução de ementas como meio de encontrar-se as rationes decidendi: “Prática que denominou de ementismo. O ementismo pode encontrar guarida no direito brasileiro? De antemão, é possível observar que a Constituição e a legislação processual civil não remetem, em nenhum momento, à ementa do acórdão para determinar a produção de qualquer efeito jurídico relevante (efeito vinculante, erga omnes, impeditivo de recurso etc.), então, por que razão, em nosso país a ementa é confundida com o precedente?” MAGALHÃES, Breno Baía; SILVA, Sandoval Alves. Quem vê ementa, não vê precedente: ementismo e precedentes judiciais no projeto do CPC. In: FREIRE, Alexandre (Org.). Novas tendências do processo civil: estudos sobre o projeto do novo Código de Processo Civil. Vol. 2. Salvador: Juspodivm, 2014. p. 213.

Sobre o autor

Vinicius Silva Lemos

Advogado. Doutor em Processo Civil pela UNICAP. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF. Especialista em Processo Civil pela FARO. Professor de Processo Civil na FARO e UNIRON. Presidente do IDPR – Instituto de Direito Processual de Rondônia.