A advocacia pública e os honorários de sucumbência na visão do STF

Introdução

A percepção de honorários de sucumbência por advogados públicos (gênero) sempre foi objeto de muitas controvérsias. Antes da entrada em vigor do Código de Processo Civil/2015, vigorava o CPC/73 que se omitia sobre o tema, o que permitia inúmeras interpretações, seja para admitir a percepção dos honorários de sucumbência vinculada a Fundo Público para qualificação de tais profissionais, seja para não admitir de forma alguma a sua percepção, este último sob o fundamento de inconstitucionalidade ante a violação do regime de subsídio previsto no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal, chegando-se, em alguns casos Brasil afora, na absurda responsabilização criminal de advogados e procuradores em razão da percepção de tais verbas.

Em todo o país, inúmeras legislações de cunho municipal, estadual e federal que, de alguma forma, regulamentavam a percepção e a distribuição de tal verba entre advogados públicos foram alvo de ações diretas de inconstitucionalidade, ações civis públicas e até mesmo de procedimento de controle junto aos tribunais de contas estaduais.

Com a entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2015, a percepção de honorários de sucumbência por advogados e procuradores públicos passou a ter amparo legal no preceito contido no art. 85, §19, cujo teor estabelece expressamente que o advogado público pode receber honorários de sucumbência.

Inobstante a nova previsão legal no CPC/2015, a matéria voltada à percepção de honorários de sucumbência por advogados públicos voltou a ser alvo de críticas e discussão judicial, culminado com a interposição de inúmeras ações diretas de inconstitucionalidade juntos aos tribunais de justiça estaduais, federais e até mesmo junto ao Supremo Tribunal Federal, questionando a constitucionalidade do próprio art. 85, § 19, do Código de Processo Civil, ante a mesma alegação de suposta violação do regime de subsídio como parcela única, previsto no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal.

Somente com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.053, proposta pela Procuradoria Geral da República em face do art. 85, § 19, do Código de Processo Civil, foi possível pacificar de vez a matéria, pois a suprema corte brasileira declarou, em julgamento pelo plenário virtual, por maioria de votos, que os advogados públicos podem receber honorários de sucumbência.

O conteúdo do julgamento da ADIN 6.053

O Supremo Tribunal Federal declarou constitucional o art. 85, § 19 do Código de Processo Civil, que dispõe que “Os advogados públicos perceberão honorários de sucumbência, nos termos da lei”.

O fundamento central de arguição de inconstitucionalidade desse dispositivo era o de que tais agentes públicos estariam submetidos ao regime de subsídios, que deve ser pago em parcela única, impossibilitando a acumulação dos subsídios com honorários, ainda que decorrentes da sucumbência.

O voto do relator, ministro Marco Aurélio, acolhia a inconstitucionalidade. O principal fundamento apresentado, a merecer ser transcrito, é o seguinte:

Descabe, considerado o regime remuneratório ao qual submetidos advogados públicos ante o exercício do cargo, placitar operação legislativa direcionada a combiná-lo àquele inerente à iniciativa privada, mitigando a força normativa do preceito contido no § 4º do art. 39, sob pena de ter-se drible à ordem constitucional e, por decorrência lógica, enriquecimento sem causa do agente público. Conforme bem salientado pela Procuradora-Geral da República, dra. Raquel Elias Ferreira Dodge, ao contrário do verificado na esfera privada, “os advogados públicos não têm despesas com imóvel, telefone, água, luz, impostos, nem qualquer outro encargo. É a administração pública que arca com todo o suporte físico e de pessoal necessário ao desempenho de suas atribuições.” Autorizada a percepção, pelos advogados públicos, de honorários de sucumbência, o sistema não fecha!

 No entanto, foi vencido pelo voto divergente do ministro Alexandre de Moraes, acompanhado por todos os demais ministros que participaram do julgamento, que concluíram pela constitucionalidade da percepção de honorários de sucumbência pelos advogados públicos.

Colhe-se do voto divergente e vencedor do ministro Alexandre de Moraes, os seguintes fundamentos:

No mesmo sentido, a propósito, estabelece o referido art. 22 da Lei 8.906/1994, segundo o qual é “a prestação de serviço profissional” que assegura aos profissionais inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil “o direito aos honorários […] de sucumbência”, aplicável, integralmente, à Advocacia Pública. A possibilidade de aplicação do dispositivo legal que prevê como direito dos advogados os honorários de sucumbência também à advocacia pública está intimamente relacionada ao princípio da eficiência, consagrado constitucionalmente no art. 37, pois dependente da natureza e qualidade dos serviços efetivamente prestados. No modelo de remuneração por performance, em que se baseia a sistemática dos honorários advocatícios (modelo este inclusive reconhecido como uma boa prática pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE), quanto mais exitosa a atuação dos advogados públicos, mais se beneficia a Fazenda Pública e, por consequência, toda a coletividade. (…) Diante disso, afasto a alegação veiculada na inicial e concluo que a percepção de honorários de sucumbência pelos advogados públicos federais não representa ofensa à determinação constitucional de remuneração exclusiva mediante subsídio (arts. 39, § 4º, e 135 da CF).

A mesma Corte firmou o entendimento, entretanto, de que a percepção dessa modalidade de honorários está limitada ao teto constitucional dos ministros do Supremo Tribunal Federal:

A possibilidade de percepção de honorários sucumbenciais por parte dos advogados públicos, portanto, não se desvencilha por completo das imposições decorrentes do regime jurídico de direito público a que se submetem esses agentes públicos, pois são valores percebidos por agentes públicos em função mesmo do exercício de cargo estritamente público. Por essa razão, nada obstante compatível com o regime de subsídio, sobretudo quando estruturado como um modelo de remuneração por performance, com vistas à eficiência do serviço público, a possibilidade de advogados públicos perceberem verbas honorárias sucumbenciais não afasta a incidência do teto remuneratório estabelecido pelo art. 37, XI, da Constituição Federal.

Apontado o resultado do julgamento, algumas interpretações a respeito da aplicação da decisão do Supremo Tribunal Federal devem ser discutidas antecipadamente, para que não gerem novas divergências interpretativas, e a respeito das quais passamos a discorrer.

A destinação de eventuais valores excedentes ao teto constitucional

A imposição do teto constitucional abre uma questão de grande importância: que destinação deve ser dada ao valor excedente, quando atingido o teto?

A primeira conclusão a ser tomada é a de que o valor não pode ser revertido em favor do ente público, pois não possui natureza jurídica de imposto, contribuição ou qualquer outra forma de arrecadação federal, estadual ou municipal. É uma parcela paga pelo particular, que não tem como destino o poder público.

A solução vem contida no voto do ministro Luiz Roberto Barroso, o qual, acompanhando o voto divergente do ministro Alexandre de Moraes, ainda acrescentou:

[…] Faço apenas uma ressalva quanto à forma de aplicação do teto remuneratório aos honorários advocatícios. Como se sabe, os honorários são verbas de natureza variável, que dependem do êxito do ente federado nas ações judiciais. Por esse motivo, embora seja possível que, em determinado mês, as parcelas remuneratórias somadas aos honorários superem aquele limite, também há a possibilidade de esse montante total, em outro mês, permanecer muito aquém do teto constitucional. Para prevenir eventuais desequilíbrios e evitar injustiças, penso ser razoável permitir que, nos meses em que haja percepção de honorários acima do teto, o valor residual seja distribuído entre os advogados públicos nos meses seguintes, desde que se respeite mensalmente, como limite máximo, o subsídio dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Esse mecanismo permitiria um maior equilíbrio na distribuição dos honorários, buscando conciliar a correta aplicação do teto constitucional com o incentivo à atuação dos advogados públicos proporcionado pelos honorários sucumbenciais. Assim, a incidência do teto não prejudicaria o recebimento de uma justa retribuição pelo trabalho exercido pelos advogados públicos na defesa dos interesses da União, dos Estados e dos Municípios.

De fato, entendemos que a natureza variável, que é própria dessa modalidade de honorários, permite essa reserva, bem como sua utilização futura, sendo essa solução a mais adequada à hipótese de valores excedentes.

A desnecessidade de regulamentação

Outra questão importante a deixarmos evidente é que a aplicação do art. 85 § 19 do CPC prescinde de regulamentação. Embora o dispositivo cite, em sua parte final, a expressão “nos termos da lei”, a necessária lei já era pré-existente ao próprio CPC: o Estatuto da OAB.

Na obra Estatuto da OAB, Regulamento Geral e Código de Ética interpretados artigo por artigo, os advogados Hélio Vieira e Zênia Cernov assim defendem que o dispositivo é autoexecutável:

Esse dispositivo é autoexecutável porque a lei a que se refere já existe: este Estatuto da OAB, especificamente em seu art. 23. Assim, o advogado público é o titular dos honorários de sucumbência fixados no processo, independentemente da necessidade de qualquer outra lei (LTr, 2016).

De fato, o conteúdo do art. 23 do Estatuto da OAB é claro e suficiente em si mesmo para assim garantir:

Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor.

Os municípios, as autarquias e quaisquer outros entes públicos que ainda não tenham regulado a percepção dos honorários de sucumbência em favor de seus procuradores, portanto, podem, e é aconselhável que o façam, regular a matéria, até para melhor evidenciar a forma de distribuição dessa verba; mas, o Poder Judiciário não pode condicionar a destinação dos honorários de sucumbência a estes procuradores à preexistência dessa regulamentação.

A sucumbência fixada antes do CPC/2015

Os honorários de sucumbência fixados antes do CPC/2015 que estão sendo ou serão executados após o seu advento, igualmente pertencem à advocacia pública, não podendo ser esse considerado como um marco inicial para esse direito. Em verdade, o referido diploma processual civil apenas ratificou esse direito.

Ora, o Estatuto da OAB em momento algum excluiu a advocacia pública da autoridade do seu art. 23, supra transcrito.

O que havia era uma – completamente equivocada – interpretação do art. 4º da Lei n. 9.527/94 que assim dispõe:

Art. 4º. As disposições constantes do Capítulo V, Título I, da Lei 8.906, de 4 de julho de 1994, não se aplicam à Administração Pública direta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como às autarquias, às fundações instituídas pelo Poder Público, às empresas públicas e às sociedades de economia mista.

Com base nesta lei, o Superior Tribunal de Justiça, equivocadamente, construiu um entendimento segundo o qual

Por força do art. 4º da Lei 9.527/94, os honorários advocatícios de sucumbência, quando vencedor o ente público, não constituem direito autônomo do procurador judicial, porque integram o patrimônio público da entidade. (AgRg no REsp 1101387/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma, publ. DJe 10/09/2010).

Ocorre que, na verdade, o art. 23 do Estatuto da OAB, que garante que os honorários de sucumbência pertencem ao advogado, não se encontra Capítulo V, Título I do Estatuto da OAB, mas sim no Capítulo VI. Assim, a Lei n. 9.527/97 excluiu a aplicação do art. 23 aos integrantes da advocacia pública. A exclusão a que se refere tal dispositivo diz respeito aos advogados empregados, esses sim, regidos pelo Capítulo V.

Disso resulta a conclusão de que, antes mesmo do advento do CPC/2015, a sucumbência já pertencia aos advogados públicos e, portanto, os honorários fixados antes dele também serão destinados à advocacia pública.

Conclusão

Destarte, esperamos, com a decisão da Suprema Corte, declarando a constitucionalidade do art. 85, § 19 do CPC, eliminar de vez a controvérsia sobre o tema da percepção de honorários de sucumbência pela advocacia pública, destinando a esta toda a sucumbência fixada nas ações em que atuar, tenham sido fixados antes ou depois do CPC/2015, haja ou não regulamentação expedida pelo ente público, e ainda que submetida ao teto remuneratório, admitindo-se que eventual excesso, quando houver, venha a ser destinado aos meses seguintes.

Sobre o autor

Carlos Alberto Mesquita

Procurador do Município de Porto Velho.
Presidente da Associação dos Procuradores do Município de Porto Velho.