ADIN 6.053 X ADIN 4.636: prejuízo para a Defensoria Pública

O resultado do julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal na ADIN n. 4.636, que garantiu que os defensores públicos não precisam ser inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil seria uma vitória para a Defensoria Pública, não fosse o resultado de outra ADIN, a n. 6.053, que garantiu à advocacia pública – termo que inclui os defensores – o direito aos honorários de sucumbência.

A Defensoria Pública da União é regida pela Lei Complementar n. 80/94, a qual vedava a percepção de honorários em seu art. 46, inciso III: “Art. 46. Além das proibições decorrentes do exercício de cargo público, aos membros da Defensoria Pública da União é vedado: III – receber, a qualquer título e sob qualquer pretexto, honorários, percentagens ou custas processuais, em razão de suas atribuições”. As defensorias públicas estaduais, em geral, repetiam essa mesma proibição.

Ocorre que sobreveio o Código de Processo Civil de 2015, que autorizou expressamente a percepção de honorários de sucumbência pela advocacia pública, em seu art. 85, § 19:

CPC, art. 85.
§ 19. Os advogados públicos perceberão honorários de sucumbência, nos termos da lei.

Todos os integrantes da advocacia pública, portanto, são beneficiários dos honorários de sucumbência fixados nos processos em que atuam, por força do dispositivo supra. Mas o que é exatamente “advocacia pública”?

O Estatuto da Advocacia da OAB relaciona de modo taxativo todos os cargos que integram esse termo, no art. 3º, § 1º:

EAOAB, art. 3º.
§ 1º Exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria da Fazenda Nacional, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas entidades de administração indireta e fundacional.

O Regulamento Geral da OAB também assim os relaciona na Seção II – Da Advocacia Pública:

RGOAB, art. 9º Exercem a advocacia pública os integrantes da Advocacia-Geral da União, da Defensoria Pública e das Procuradorias e Consultorias Jurídicas dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, das autarquias e das fundações públicas, estando obrigados à inscrição na OAB, para o exercício de suas atividades.”

Mais ainda, a advocacia pública possui provimento próprio no âmbito da OAB, qual seja o Provimento n. 114/2006, que repete a mesma relação de cargos que compõem o termo e inclui expressamente os defensores públicos em seu art. 2º, inciso II:

Provimento 114/2006:
Art. 2º Exercem atividades de advocacia pública, sujeitos ao presente provimento e ao regime legal a que estejam submetidos:
II – os membros das Defensorias Públicas da União, dos Estados e do Distrito Federal;

Assim, resta inequívoco que os defensores públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal são destinatários do art. 85, § 19 do CPC, que garante a percepção de honorários de sucumbência à advocacia pública.

É que o Código de Processo Civil, promulgado em 16 de março de 2015, revoga o art. 46, inciso III da Lei Complementar n. 80/94 e todas as leis estaduais que também vedavam a percepção dessa modalidade de honorários. Isso se dá por simples aplicação do art. 2º § 1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que dispõe que “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.” Tendo o Código de Processo Civil admitido a percepção de honorários pelos advogados públicos, revogadas estão as disposições que a vedavam, assim como as disposições que de outro modo destinavam esses honorários, inclusive fundos institucionais.

Em nosso livro Honorários Advocatícios (LTr, 2019), defendemos a tese da legalidade da percepção de honorários de sucumbência por parte dos defensores públicos a partir do novo CPC, in verbis:

Disso decorre, ainda, que o art. 85, § 19, do novo CPC revogou os arts. 46, inciso III, e 91, inciso III, da Lei Complementar n. 80/94, que vedavam a percepção de honorários pelos defensores públicos da União, do Distrito Federal e dos Territórios. Também revogou leis que eventualmente tenham proibido a percepção de honorários pelos defensores públicos do Estados (p. 71).

E toda a celeuma a respeito da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da percepção dos honorários por parte da advocacia pública foi afastada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADIN n. 6.053, no qual, por 11 votos a 1, a Corte entendeu constitucional a percepção da sucumbência pela advocacia pública. O voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes assim interpretou a questão:

No mesmo sentido, a propósito, estabelece o referido art. 22 da Lei 8.906/1994, segundo o qual é “a prestação de serviço profissional” que assegura aos profissionais inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil “o direito aos honorários […] de sucumbência”, aplicável, integralmente, à Advocacia Pública. A possibilidade de aplicação do dispositivo legal que prevê como direito dos advogados os honorários de sucumbência também à advocacia pública está intimamente relacionada ao princípio da eficiência, consagrado constitucionalmente no artigo 37, pois dependente da natureza e qualidade dos serviços efetivamente prestados. No modelo de remuneração por performance, em que se baseia a sistemática dos honorários advocatícios (modelo este inclusive reconhecido como uma boa prática pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE), quanto mais exitosa a atuação dos advogados públicos, mais se beneficia a Fazenda Pública e, por consequência, toda a coletividade. (…) Diante disso, afasto a alegação veiculada na inicial e concluo que a percepção de honorários de sucumbência pelos advogados públicos federais não representa ofensa à determinação constitucional de remuneração exclusiva mediante subsídio (arts. 39, § 4º, e 135 da CF).

Resta evidente que cabe aos defensores públicos pleitear para si, ou para suas respectivas associações, a titularidade dos honorários de sucumbência nas mesmas condições que os demais integrantes da advocacia pública, com fundamento no art. 85 § 19 do CPC, no seu efeito de revogar os dispositivos legais que vedavam esse recebimento, e na conclusão do STF proferida na ADIN n. 6053.

Sucede que outra ADIN está prestes a dispensar esses defensores de se manterem da condição de integrantes da advocacia pública, sob regência do Estatuto da OAB. De fato, no julgamento da ADIN n. 4.636 o Supremo Tribunal Federal está com um amplo placar de 8 votos nesse sentido.

O relator, Ministro Gilmar Mendes, em seu voto assim justifica essa conclusão:

Tais membros definitivamente não se confundem com advogados privados ou públicos. A topografia constitucional atual, assim, não deixa margem a discussão. São funções essenciais à Justiça, em categorias apartadas, mas complementares: Ministério Público, Advocacia Pública, Advocacia e Defensoria Pública. Ainda que assim não fosse, as distinções vão além. Ora, usando do raciocínio exposto na inicial, pode-se afirmar que os membros do Ministério Público também peticionam, sustentam oralmente suas teses, recorrem, participam de audiências. Todavia, não se cogita a exigência de inscrição nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil. A diferença entre a atuação de um advogado (particular) e a de um defensor público é clamorosa, perceptível inclusive antes do advento da EC 80/14. O primeiro, em ministério privado, tem por incumbência primordial a defesa dos interesses pessoais do cliente. O segundo, detentor de cargo público, tem por escopo principal assegurar garantia do amplo acesso à justiça, não sendo legitimado por qualquer interesse privado. Tais características não afastam, obviamente, a prestação de serviço público e exercício de função social pelo advogado, tampouco dispensa o defensor do interesse pessoal do assistido. O ponto nevrálgico é a definição das finalidades transcendentes. O Defensor Público tem assistido, e não cliente. A ele é vinculado pelas normas de Direito Público, e não por contrato. Sendo assim, a função dos membros da Defensoria Pública é, evidentemente, marcada pela impessoalidade, porquanto o assistido não escolhe seu defensor, tampouco o remunera diretamente. Ao contrário do cliente, que gratifica o trabalho feito com honorários, tendo poder de escolha sobre o profissional de sua preferência, trazendo à função do advogado feição personalíssima.

Com base nesses fundamentos, o Ministro concluiu que os defensores não precisam estar inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil:

Confiro ainda interpretação conforme à Constituição ao art. 3º, § 1º, da Lei 8.906/1994, declarando-se inconstitucional qualquer interpretação que resulte no condicionamento da capacidade postulatória dos membros da Defensoria Pública à inscrição dos Defensores Públicos na Ordem dos Advogados do Brasil.

No exato momento em que mais passou a ser interessante aos defensores públicos a condição de integrantes da advocacia pública, essa condição está em vias de lhes ser negada. O julgamento encontra-se pendente de um pedido de vista do Ministro Dias Toffoli.

E o prejuízo, é claro, não se limita à titularidade dos honorários de sucumbência. Muitos outros direitos previstos no Estatuto da OAB lhes serão extirpados, como, por exemplo, ocuparem cargos na direção e no conselho da OAB, participarem das listas sêxtuplas para preenchimento de vagas do quinto constitucional perante os Tribunais, e a vasta relação de prerrogativas prevista no art. 7º do Estatuto.

Como se vê, uma análise do conteúdo do resultado das duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade não pode levar a outra conclusão: serem dispensados de estarem inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil se mostrará um extremo prejuízo para os defensores públicos, considerando especialmente o direito à percepção dos honorários de sucumbência pela advocacia pública.

Sobre a autora

Zênia Cernov

Advogada nas áreas trabalhista e administrativa. Autora dos livros Greve de Servidores Públicos (LTr, 2011), Estatuto da OAB, Regulamento Geral e Código de Ética interpretados (LTr, 2016) e Honorários Advocatícios (LTr, 2019). Membro da Academia Rondoniense de Letras, Ciências e Artes.